Hazul por Hazul
O artista que não deixa que lhe fotografem o rosto encheu a cidade de mulheres sem rosto e figuras animadas por ondas e formas geométricas. E condensa, na sua obra a evolução da relação da cidade com os graffiti.
Ele passou pelo tempo da clandestinidade. Da intolerância política oposta à tolerância popular. Da cidade decrépita, a cair, onde o graffiti era visto como mais um sinal dessa decrepitude, mais do que a valorização, pela arte, do espaço abandonado, papel que agora lhe concedem. Aos 34 anos, Hazul tem carreira suficiente para ser ele próprio um mapa da evolução, feita de soluços, dessa relação difícil dos poderes com uma forma de expressão que sempre provocou os limites: o da propriedade, o da obrigatoriedade recente de licenciamento, que muitos continuam a não (querer) respeitar.
É uma viagem curta, esta. As 50 obras inscritas no seu mapa obrigariam a um dia inteiro, boas pernas e muita, muita água, agora que o calor chegou ao Porto, a cidade dele e que no ano passado adoptou, no seu grafismo contemporâneo, essa cor, o azul, que é, historicamente, a sua, e a dele. Hazul é o azul muito presente nos seus trabalhos e é muito mais, em significações outras, pessoais, que ele não quer ver escritas. E é logo por isto que ele se identifica como artista portuense. O tal que uma brigada anti-graffiti, criada por Rui Rio, pôs nas bocas do mundo, ao apagar-lhe uma obra numa parede em ruína, como se a ruína pintada de amarelo fosse – qual arte minimal – melhor que aquela figura sem rosto, sem nome, mas mágica, que ele nos vem oferecendo.
A notícia daquela insensibilidade correu mundo. Jornais franceses, como o Liberation, deram conta do acto que teve o condão de, por cá, instaurar um debate. E a verdade é que, mesmo no mandato anterior, a relação do poder com o graffiti começou a mudar, num processo que incluiu, em Agosto de 2013, a pintura de um mural com Rui Rio “vandalizado”, no interior de um edifício devoluto, o Axa, que o município estava a valorizar culturalmente. O Colectivo Rua, autor desta provocação, Hazul e os outros – Third, Mr. Dheo, Costah, tantos outros – encheram um ano depois vários pisos do Axa com os seus trabalhos, numa exposição (demasiado) efémera. Em cuja inauguração se tornou difícil circular pelos corredores, tal a mole de visitantes.
Foi a massa a celebrar, em aplauso, um tipo de arte feito para a massa: grátis, acessível, e que não poucas vezes transforma guetos, a cidade despojada, em sítios onde se torna imperativo ir. É o que acontece com o mapa de Hazul. A caminho da Ribeira, nas escadas do Codeçal, piso medieval sob o ruído infernal e moderno do metro na Ponte Luís I, cheira a mijo, mas lá estão duas obras, uma delas numa ruína, outra num muro em frente a uma casa recuperada, que ganhou o 3.º prémio de Reabilitação Urbana em 2001. Num caminho cheio de ruído – tags de futeboleiros, de grupos alemães e dinamarqueses – nem o trabalho de hazul escapa a uma vontade de sobreposição de “assinaturas”.
Mas o que mudou, e ai como mudou, é que, num deles, a brigada Anti-graffiti agora limpa, naquele amarelo característico, a cabeça sem rosto que todos nos habituamos a ver em muitos dos seus murais, e à qual alguns miúdos insistem em dar uns olhos, um nariz, e um sorriso. Essa cabeça de uma senhora espiritual, que um dia um desses homens da câmara recusou apagar, na rua das flores, identificando nela uma espiritualidade, uma santidade, a respeitar. Hazul concede que leiam assim essa figura recorrente, própria, no seu estilo recheado de figuras geométricas e arabescos que se, se muda no acrescento de novas cores – mais dinheiro, mais latas tinta, menos limitações cromáticas, assume – mantém sempre uma característica: a bidimensionalidade, coisa de antigas civilizações onde ele foi beber influências.
O mapa de Hazul tem 56 pontos de paragem mas haverá cerca de 80 obras ainda visíveis na cidade. É possível que umas permaneçam por uns anos, como as que ele pintou na antiga Viela da Cadeia (Travessa da Rua da Chã), onde os ventos da reabilitação urbana até podem demorar chegar, mas outras, acabarão por desaparecer. Em Setembro de 2013, ele arriscou montar uma exposição de dez pinturas ao longo de ruínas na rua de Santiago de Miragaia, e até se deu ao trabalho de escrever uma nota à imprensa, para se anunciar. Passados meses, as obras do The World of Discoveries eliminaram grande parte delas, como ele explicou numa notícia do P3. Mas aqui, de novo a diferença: a empresa que detém este parque temático dedicado aos descobrimentos convidou-o, agora, para pintar lá dentro.
Ele já tem dito, e repete-o, que a cidade tem de ter espaço para tudo. Para murais integrados em eventos, para grandes obras encomendadas por instituições, como o município, mas também espaços livres, não condicionados por “chamadas” – como a câmara está a fazer na Rua da Restauração, onde foi criada uma galeria para mudar de seis em seis meses – mas abertos à vontade dos artistas e à experimentação. Lugares onde seja possível ir pintar em família, experimentar umas latas, novas cores e traços. Aprendizagem que ele foi fazendo clandestinamente, à noite, antes de ganhar o suficiente para alugar um espaço, o seu “atelier”, situado em plena zona histórica, a mais povoada com turistas, e com as suas obras.
Como outros, o artista tem sido chamado a levar o seu trabalho para novos suportes. Há um hostel com uma parede “decorada” por si, um livro infantil, A Cotovia Via Via, rótulos de vinho, em França, uma colecção de azulejos e uma colecção de roupa, que vai estar na passerelle da Moda Lisboa. E o novo restaurante que abrirá brevemente na Cooperativa Árvore vai servir-nos comida com pratos decorados com aquelas mesmas linhas ondulantes, mar azul na cidade, que ele anda a pintar por estes dias ali ao lado, num muro comprido em frente ao Passeio das Virtudes que ele “andava a namorar há algum tempo”. Um trabalho simples, de três cores e cinzento, como que a pedir a quem passa que olhe para o jardim que tem em frente. Que é, para ele, o mais bonito que há ali.