James Salter: “Aqui está o que eu sei sobre o mundo”
A menos de um mês de fazer 90 anos, James Salter é pela primeira vez editado em Portugal. Um acontecimento, com um romance que é em si outro acontecimento, Tudo O Que Conta. Fomos encontrá-lo em casa para uma conversa sobre a verdade que há na memória e a relação entre literatura e a vida. Ou seja, sobre quase tudo o que importa.
Durante todo o percurso, cai uma chuva miúda, ainda não há flores nas árvores, mas o campo está de um verde que contrasta com o cinzento do céu, uma cor que o mar replica em ondas rasteiras que terminam em espuma branca num areal sem cheiro.
James Salter descobriu este lugar nos anos 1960, numa altura em que um escritor sem ser rico podia comprar uma casa nos Hamptons. “Muitos pintores vieram atrás desta luz”, diz, ao volante de um Saab que conduz por ruas calmas, cinco minutos desde a paragem do autocarro até à casa onde vive rodeado de quadros, livros e uma cozinha bem equipada para receber amigos num dos sítios onde mais gosta de estar: à mesa. “Não sei se hoje viria para aqui, mas nesta altura é calmo. Habituei-me”, continua até chegar à casa de madeira castanha com um alpendre na frente, a contrastar com o luxo das mansões que se foram construindo. Na mão traz um livro, Do Lado de Swan, de Proust.
O coronel James Horowitz, tornado Salter em 1956, quando publicou o seu primeiro livro, The Hunters, faz 90 anos no próximo dia 10 de Junho. Foi piloto de guerra e é um escritor de referência para grandes nomes da literatura americana. Richard Ford, John Irving, Jay McInerney ou Bret Easton Ellis não lhe têm poupado elogios. Antes, Graham Greene batera o pé para que ele fosse publicado em Inglaterra e Vladimir Nabokov reconheceu-lhe o talento. Publicou seis romances, três colectâneas de contos, um livro de memórias — Burning the Days (1997) —, ensaios; escreveu quatro argumentos para cinema, um livro de poesia, e em 2013 apareceu com um romance que está entre as grandes narrativas dos EUA nos últimos anos: Tudo o Que Conta. É a história de um homem que queria ter uma existência singular, deixar a sua marca no mundo, e uma reflexão brilhante sobre a passagem do tempo. É com este livro que James Salter chega pela primeira vez a Portugal. Não estamos perante um autor best-seller, mas um estilista da palavra, certeiro, conciso. Em 2014, a francesa Lire dedicava-lhe uma capa; dois anos antes, o britânico The Guardian chamara-lhe o herói esquecido da literatura americana; e em 2013 norte-americano New York Times declarava que se existisse um Mount Rushmore (a montanha de granito do Dakota do Sul onde estão esculpidos os rostos de quatro presidentes dos EUA) para escritores, Salter já lá estaria.
Não há assomos de vaidade nesta conversa pausada em que Salter faz muitas perguntas e presta muita atenção às que lhe são feitas. Nada sai de modo mecânico. “A ideia de se ser fiel à memória é muito engraçada, ou a ideia de verdade da memória”, refere numa voz trémula, as mãos cruzadas sobre os joelhos. Porquê? “Porque a memória não é verdadeira. Talvez seja preciso viver muito tempo para se perceber isso. Toda a ideia de memória é uma reposição ou revisão de um certo período no mundo. Agora vejo que a minha memória me atraiçoa, diz-me coisas que nunca imaginei. Já não consigo confiar nela para nada, excepto para factos inquestionáveis, sítios onde estive, pessoas que conheci. Sei que estive em Paris, e mais do que uma vez, mas a Paris de que me lembro provavelmente nunca terá existido. Enquanto escritor, estou qualificado para fazer coisas acontecerem, ou virem ao de cima, mas isso é só entre mim e o papel."
O mais recente romance de Salter é escrito no tempo presente, sem que se note esse trabalho sobre a memória do escritor. “Verdade na ficção e verdade na memória são coisas diferentes”, precisa. “A ficção está acima da verdade. Num outro patamar moral e estético, artístico. A verdade na memória remete para uma verdade mais objectiva, algo que terá acontecido. Terá ele visto? Terá ele dito? Terei sentido? Será que fomos? Eu adoro a memória. A nossa vida acaba por ser só memória. Está sempre a ir embora a todo o tempo, a mudar.” O que o move então no real se tudo acaba por ser memória? “A memória das coisas feitas, das coisas sempre feitas. Levantar-se de manhã e apanhar o autocarro. Sentar-se no autocarro e dar por si a pensar. A pensar em quê?”
Somos o que vivemos, a nossa identidade está aí, continua a dizer por outras palavras James Salter, mesmo quando esse passado se confunde com a memória que temos dele, ou se transforma em matéria quase onírica. “Chega uma altura em que percebemos que tudo é um sonho, e só as coisas guardadas por escritor têm alguma possibilidade de ser reais”, escreveu em epígrafe a este romance sobre a vida de Philip Bowman, o rapaz que estava em Pearl Harbour na “última manhã”, ao comando de um caça, quando o Japão atacou a base norte-americana no Havai. Sobreviveu. Chamaram-lhe herói, e o que pode um herói de guerra fora dela? Bowman queria ser escritor, foi editor numa América que passava a ser o centro literário mundial. Teria essa noção de que fixar o real era uma forma de lhe sobreviver, e Salter fez esse exercício pessoal, o de, sabendo que a memória atraiçoa, usá-la ainda assim como fonte única de um livro. As suas memórias. “Pretendiam ser verdadeiras. Não tornadas mais bonitas ou mais dramáticas. Foi urgente escrevê-las, um impulso. O meu editor queria que eu escrevesse e envolvi-me nesse trabalho, mas dei-lhe o estilo de um romance. Não é assim tão interessante”, conclui. A biografia saiu em 1997 e adiava o livro que se esperava. Desde Solo Faces, em 1979, que Salter não aparecia com um romance. Seria preciso esperar muito mais. No total, foram 34 anos até Tudo o Que Conta. “Foi duro de escrever”, afirma. Tive uma ideia e ela ia sempre mudando." Levanta a mão, conta pelos dedos. “As primeiras ideias surgiram uns 20 anos antes de começar a escrever. Tomei muitas notas, nunca estava satisfeito.” A figura de Philip Bowman ainda não tinha aparecido. “Tinha um tipo diferente de pessoa, estava interessado nela, mas não o suficiente. Estava bloqueado.”
Pode acontecer depois de uma ideia arrebatadora que se perde. “Estava em Nova Iorque, no Gramercy Park Hotel. Era tarde e de repente a ideia do livro veio-me completa. Não quis acordar a minha mulher. Entrei na casa de banho, acendi a luz, e escrevi cerca de uma página e meia, inspirado. Parecia que todas as ideias vinham ao serviço do livro que iria ser, e da forma que ele iria tomar. Fui para a cama num estado de enorme felicidade. Mas perdi esse papel no meio dos muitos pedaços de papel que me rodeiam. Procurei durante muito tempo, tentei reconstruir. Não consegui. Estava à espera outra vez e não acontecia nada até que tive outra ideia.” Os olhos de James Salter viajam da poltrona para a janela grande que dá para a mata, não se fixam em nenhum dos livros à volta, de vez em quando cruzam-se com o interlocutor para se certificar de que não o perdeu, mas estão num passado que quer trazer. “Naquele tempo estava muito próximo de Saul Bellow. Ele estava a falar sobre as suas mulheres e enfrentava um processo em tribunal por causa de um divórcio. Ganhara o Nobel e tinha muito dinheiro. A mulher queria o dinheiro e ele era rico, mas não queria partilhar com ela. Estava muito zangado. Eu também falava sobre a minha mulher. Já não me recordo se estava ou não divorciado [separou-se da primeira mulher em 1975 e em 1976 começou a viver com a jornalista e dramaturga Kay Eldrege, com quem ainda está casado]. Foi por ali. A minha mulher tinha chegado da Virginia e contava-me imensas histórias. O Bellow perguntou-me se eu já tinha escrito sobre aquilo. Disse-lhe que não e respondeu que era sobre isso que devia escrever.”
O espaço dedicado à Virginia ocupa boa parte do romance, que percorre várias geografias na América que fazem parte do atlas biográfico e sentimental de Bowman. “Quando comecei percebi que o livro iria ser longo. Estava interessado no lado japonês da guerra. O ódio militar japonês proibia-os de se renderem. Seria uma desonra quase no sentido religioso. Como consequência, a luta foi tremenda até restarem os últimos homens." A guerra que marcou a vida de Bowman, ainda que poucas vezes ele falasse dela, também fez parte da de Salter, que se formou em West Point em 1945, combateu na Coreia (1950-1953), e serviu o exército norte-americano até 1956, quando decidiu que seria escritor. Como Bowman, também ele poderia dizer: “Tinha estado na guerra, a sua vida era mais real por causa disso." "O livro começa por essa batalha. Isso deu-me o rumo ao livro. E eu sabia que ia escrever sobre um editor e sobre uma era, e sobre certas pessoas e coisas que começavam a desaparecer." Foi a base. Da escrita e do silêncio. Há uma guerra que marca pessoalmente, mas que não se pode estar sempre a evocar. “Ninguém está realmente interessado em saber. Mais tarde no livro, uma mulher pergunta-lhe acerca do que foi importante na sua vida. É uma pergunta difícil. Ele responde a isso de forma rápida, mas sabe que a parte mais dramática e humana da sua vida foi esse episódio triste e diz-lhe isso." Será quase sempre assim para quem viveu a guerra. Salter não se exclui. “Este não é um livro biográfico, mas tudo o que eu sei está aqui."
O compasso da escrita
Não é pouco. A experiência de leitura de Tudo o Que Conta está sintetizada no título. Estamos no osso, na ilusão da simplicidade, fora de subterfúgios estilísticos ou de conteúdo. “Acho que escrevo um pouco assim.” Marca um ritmo com as mãos no ar e acompanha com um som, espécie de compasso. Pam, pam, pam… “Escreve-se e geralmente fica-se insatisfeito, e continuamos, e é como se aparecesse alguma coisa. Se nos surpreender é bom. Escrevo um pouco por ouvido. Leio alto o que escrevo e vejo como soa. Talvez seja um desperdício de esforço. Acho que não há muita gente que leia alto para si própria. Quase sempre lêem com os olhos. Mas acho que no essencial escrevo como as outras pessoas escrevem. Gostava de poder dizer qualquer coisa mágica.” Olha nos olhos, numa emoção incontida. “Escrever dá muito trabalho. Algumas pessoas sabem fazer o seu trabalho melhor do que outras. É tão cansativo. Um romance é um grande empreendimento e tem consequências. Ao escrever, somos testados a cada página. É preciso ver como se liga à outra e quando não há ligação há que voltar atrás e muitas coisas acontecem; há botões que activam emoções e ideias, uma cena interpõe-se, e se às tantas não temos o controlo de uma situação que terá de ter sempre imprevistos é terrível.”
Bowman permite-lhe falar dessas hesitações e de um meio literário que transporta para a ficção com alguns nomes reais, outros inventados, numa escrita muito íntima em que o decoro do estilista provoca o do homem que gosta de escrever sobre sexo, sobre paixão, sobre o físico. “Nunca me atreveria a escrever sobre sexo do ponto de vista íntimo, invasor. Seria ridículo”, responde, “mas escrevo sobre o sexo porque é essencial. E escrevo quase sempre sobre um ponto de vista masculino. Nos meus primeiros anos de escrita tive uma protagonista e ela falava um pouco de sexo, mas mesmo uma perspectiva masculina é muitas vezes rejeitada. Não merece muitos aplausos. É vista como chauvinista." Para entender, basta ler um dos seus romances ou contos. Sempre esse físico como parte do humano, entre o trivial e o que de mais profundo existe. “O livro é escrito com socos, mas não podemos estar sempre a socar, com frases memoráveis. Não se conseguiria ler. Seria penoso. Temos de escrever de forma um pouco mais trivial”, prossegue, outra vez com sons. Os pés batem no chão, nas mãos, nas pernas — articula sons com os pés e as mãos numa cadência ritmada a piscar o olho a outras artes. A música, a pintura, tudo está na literatura de Salter, e mais ainda neste livro. Edward Hopper, Verdi, García Lorca, a luz outra vez, e a solidão enquanto matéria de escrita.
Como um rio
Philip Bowman foi construído à medida dessa vontade de falar do homem só, irremediavelmente só, nos seus esforços para ser amado. O amor e a morte, a arte, a resignação, o desencanto, a falta de religião. James escolhe ser Salter também para se demarcar de outros autores norte-americanos de origem judaica. Não é um homem religioso, como a sua personagem não o é. A experiência da guerra explica isso? “Bowman não era religioso e não acreditava num Deus que matava ou deixava viver de acordo com um desígnio insondável que não tinha em consideração se a pessoa era decente, devota ou inútil para o mundo”, lê-se no livro. “Ele está próximo do que eu sou”, concorda Salter, "mas não o nomeei meu porta-voz. É curioso, estamos numa época do pensamento não-religioso, do comportamento não-religioso, e ao mesmo tempo tudo é religioso. Temos uma guerra religiosa a acontecer…”
E um escritor perante isso, a sua época? "O papel tem mudado. Pedem-se tantas coisas ao escritor e agora ele está num plano de menor protagonismo, menos influente. Não sei se é bom ou mau. É assim.” Pausa. “Provavelmente tenho escrito as mesmas coisas de outra forma noutros livros, repetindo-me em certas imagens. Por exemplo, a imagem da morte como um rio. Acho que escrevi isso umas três ou quatro vezes, para minha vergonha. Não devia estar a dizer a mesma coisa constantemente. Geralmente temos meia dúzia de coisas sobre as quais escrever e traçamos um círculo à volta delas. São os nossos grandes interesses e não vale a pena inventar.”
O inovador está, muitas vezes, nos acrescentos que os leitores trazem ao que se escreve. “É um cliché, acho, como dizer que é impossível viver o presente, mas isto pode-se dizer de muitas maneiras e é nesse dizer que nos revelamos, escritor e leitor”. Há angústia aqui, e pudor. “Revelamos tanto de nós quando escrevemos, mesmo quando achamos que não, só pelo modo de escrever sobre os acontecimentos do dia. As palavras que usamos, as coisas que escolhemos, já para não falar do que tratamos de forma eufemística, a profundidade e a futilidade. Tudo isso está num pedaço de escrita. Um leitor inteligente é capaz de ver muita coisa, não necessariamente sobre o escritor. Não é psicanálise, mas a posição do escritor é revelada em consequência da pessoa do escritor. Escrever um livro é tão embaraçoso quanto exaltante. Estamos a escrever em frente aos leitores e eles podem aplaudir, podem gostar de nós, mas se calhar não é só isso.”
Tudo para dizer que é possível saber muito de James Salter ao ler a história de Philip Bowman. Repete: “Aqui está o que eu sei sobre o mundo." A pausa é longa. De costas para a luz da janela, aos pés, aberto mais ou menos a meio, está um romance de Toni Morrison. Não dá para ver o título. “Muitas vezes retenho na minha cabeça o que uma frase deve ser. Algumas vezes é respiração, e uma frase segue-se à outra nesse processo de respirar, e alguém começa a rir e continuamos a rir, e a frase segue a gargalhada. Outra vezes quebramos o riso porque tem de ser. Pode ser com um parágrafo ou mais do que isso. Uma frase leva-nos ao que vem a seguir. Não gosto de livros que sejam uma simples exposição, e tento não os escrever assim. O que me interessa é o modo, o estilo, e o que informa esse estilo. Não se pode escrever com o estilo de outra pessoa, não se pode escolher uma ordem mental. Adoro o Carver [Raymond Carver 1938-1988], mas não posso escrever nesse estilo. É o dele. Ou no de Thomas Wolfe [1890-1938], que tanto admiro. Jack Kerouac foi muito influenciado por ele e por Faulkner. Uma vez perguntaram a Faulkner quem eram os melhores escritores na América. Ele respondeu: 'Todos falharam, mas o que falhou melhor foi Thomas Wolfe e depois eu.'"
Concorda? “Adoro a resposta.”