Um homem normal

Sempre no fio da navalha, entre a ficção e a realidade, Olivier Rolin escreveu um romance sumptuoso sobre o fim de uma utopia

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Ao mesmo tempo que narra a história atroz de Alexei, envolta numa espécie de “banalidade do Mal”, Olivier Rolin desenha com elegância o descalabro da maior utopia do século XX, o comunismo Dario Cruz

“A sua ocupação eram as nuvens”, escreveu o escritor francês Olivier Rolin (n. 1947) no começo do seu mais recente romance em que conta a história do soviético Alexei Feodossievitch Vangengheim, nascido numa família da pequena nobreza numa aldeia ucraniana em 1881. A sua paixão nunca foi “cartografar o inapreensível”, mas as “realidades mensuráveis”, a estiagem dos rios, as massas de ar, o degelo, a evolução das chuvas, a sua influência na agricultura e na vida dos cidadãos soviéticos, porque “o socialismo também se edificava no céu”.

Como é característico dos livros de Rolin, também em O Meteorologista é no decurso de uma viagem do narrador que surge algo que o leva a escrever. Neste caso, a viagem fora, em 2010, às ilhas Solovki, situadas perto do Círculo Polar Ártico, no Mar Branco, Noroeste da Rússia. “Percorri durante alguns dias os caminhos da ilha, no meio de uma paisagem branca e negra composta por lagos gelados e florestas de coníferas que o poente ensanguentava vagarosamente”, escreverá ele. Mais tarde ficaremos a saber que foi naquelas ilhas que as autoridades soviéticas construíram, em 1923, o primeiro campo de trabalhos forçados, vulgo gulag (acrónimo de Glaynoye Upravleniye Laguerey). O narrador (autor) deslocara-se ao arquipélago impressionado pela beleza do local que “descobrira em fotografias”, e por um acaso foi-lhe mostrado um álbum editado pela filha de um deportado, Alexei, em sua memória. Metade do álbum consistia em reproduções das cartas que ele enviara à filha, Eleonora, que ainda não tinha quatro anos de idade quando foi preso, em 1934; a outra metade eram herbários, coloridos a lápis ou a aguarela na dureza das condições do campo, desenhos de animais, de uma aurora boreal, tudo com um objectivo educativo, o de lhe dar rudimentos de várias ciências, entre as quais também a aritmética e a geometria — todos estes desenhos são reproduzidos no final do romance.

Olivier Rolin tece, neste quase sumptuoso e delicado retrato de uma vítima do Grande Terror (1937-1938) estalinista, uma história sobre a perda das esperanças revolucionárias, que, segundo ele, poderá explicar o “triunfo mundial do capitalismo”. Alexei Feodossievitch Vangengheim, o meteorologista, “o amigo das nuvens”, fora um dedicado membro do partido, “um burguês comunista”, um homem normal: fez parte de uma série de comités, de comissões executivas e de conselhos científicos, foi representante da URSS em várias comissões científicas internacionais, viveu como um “construtor do socialismo” num “tempo em que a história russa parece [ainda] poder tomar outro rumo, mais pacato, mais esclarecido do que aquele, negro, terrível, que está por vir”.

Num elegante jogo no fio da navalha, sempre entre a ficção e a realidade — como aliás sempre faz, e um bom exemplo disso é o romance Baku (Sextante, 2012) —, Olivier Rolin conta a descida aos infernos de uma vítima do estalinismo. Alexei Feodossievitch foi preso pela polícia política soviética em 1934, e condenado a dez anos de cativeiro num campo de trabalhos forçados num gulag depois de julgado e considerado culpado de sabotagem contra-revolucionária (acabou por se acusar a si próprio dos crimes, como era “moda” na época). Foi julgado ainda uma segunda vez em 1937, e condenado à morte por fuzilamento. Mulher e filha souberam da sua morte 19 anos depois.

Rolin é fascinado pelas “paisagens devoradas pelo vazio”, pela “plana vastidão da terra” que exalta os céus russos, e assume a “russofilia” de que alguns amigos o acusam — mas não é a Rússia dos czares, ou dos bolcheviques, ou de Putin que ele admira, é o povo russo (mesmo admitindo a sua muita indiferença, e até brutalidade). Em O Meteorologista é evidente a imensa cultura de Rolin sobre a Rússia, sobretudo a sua literatura, pois são muitas as referências a vários autores, e não apenas aos esperados mestres clássicos; Vassili Grossman é um daqueles a quem recorre com alguma frequência. Ao mesmo tempo que narra a história atroz de Alexei, envolta numa espécie de “banalidade do Mal”, Rolin desenha com elegância o movimento de descalabro da maior utopia do século XX, o comunismo, enumerando os vários actos da “política demente de Estaline”, como aquele que em 1932-1933 provocou entre os camponeses ucranianos três milhões de mortes (e aqui recorre a Grossman e às suas descrições emTudo Passa, quando aldeias inteiras, “silenciosas e pestilentas, já só abrigavam cadáveres”). Mas ao mesmo tempo interroga-se se Alexei soube, durante as suas jornadas de trabalho pelos campos ucranianos — à semelhança de “milhões de outros que ignoram ou querem ignorar” o sofrimento que a “construção do socialismo” deixou atrás de si, e que continuaram a acreditar que na União Soviética estava “a nascer uma nova humanidade” —, do sofrimento que a “construção do socialismo” deixou atrás de si.

Mais uma vez, dando ao leitor a sensação de que não está a ler ficção — é o próprio autor quem o afirma num dos capítulos finais: “Contei o mais escrupulosamente possível, sem romancear, tentando ficar pelo que sabia (…)” —, Olivier Rolin escreveu um romance sumptuoso.

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