Polícias vão buscar passes gratuitos e saem com notas na mão
Esquema fraudulento existe há vários anos e funciona como complemento salarial dos agentes dos concelhos de Setúbal, Almada e Seixal.
O esquema fraudulento há-de repetir-se ao longo do dia e enquanto durar o período de revalidação dos passes mensais nas bilheteiras dos Transportes Sul do Tejo (TST) de Cacilhas. E se aparecem polícias que efectivamente carregam os passes de autocarro, muitos há que ali se deslocam apenas para receberem o dinheiro. A maioria pertence às esquadras dos concelhos de Almada, Seixal e Setúbal, mas o passa-palavra fez com que também já aqui venha gente que presta serviço em Lisboa.
A PSP reembolsa depois a transportadora da totalidade dos cartões carregados em cada mês, cujo valor varia consoante a zona de residência do agente. À excepção do erário público, ganham todos: o agente, que ou não necessita do passe ou consegue viajar no autocarro dos TST sem pagar, pelo menos quando está fardado, e os funcionários da transportadora, que ficam com comissões variáveis, consoante o custo de cada título de transporte trocado por dinheiro.
O PÚBLICO testemunhou, ao longo dos últimos três meses, as notas a mudarem de mãos – das dos funcionários do guichet de Cacilhas dos TST para as dos polícias, parte dos quais não resistem à tentação de abrir o folheto assim que abandonam a bilheteira, para contarem o dinheiro que o funcionário lá colocou dentro. O esquema, que dura há alguns anos e envolverá também algumas chefias, estará a ser replicado pelo menos em mais uma operadora de transportes da área metropolitana de Lisboa, embora em moldes ligeiramente diferentes. Para chegarem a Cacilhas, muitos dos agentes usam não o transporte público mas os carros de serviço – quer os automóveis oficiais da PSP, quer veículos descaracterizados, nomeadamente os Renault Clio cinzentos típicos das brigadas anti-crime.
“É uma fraude”, reconhece um polícia que confirma a forma como o esquema propicia aos colegas um complemento salarial. O agente em causa admite que também já recebeu dinheiro em troca do passe, numa altura em que se encontrava de baixa e o título de transporte não lhe fazia falta: “Um colega meu trocou-me a senha por dinheiro”, recorda. Antes de a TST ter aderido ao cartão Lisboa Viva, que tem chip electrónico incorporado - o que só aconteceu em 2011 -, os passes dos TST funcionavam com senhas de papel, que eram coladas no rectângulo de plástico.
Confrontados com a situação esta terça-feira, três funcionários da bilheteira dos TST de Cacilhas recusaram-se a dar qualquer explicação para a situação. Garantiram desconhecer este tipo de prática e remeteram qualquer esclarecimento para a administração da transportadora.
Já o comandante distrital da PSP de Setúbal, Manuel Dias, diz que irá investigar a situação, que classifica como “anómala e estranha”, por ela não ser “consentânea com a qualidade de agente da autoridade”. E assegura que “todo e qualquer indício relevante” que lhe chegue ao conhecimento sobre este assunto “dará imediatamente origem a processos-crime e a processos disciplinares”.
“Temos todo o interesse em resolver o problema”, assegura, adiantando estar neste momento a ser implementado um “novo sistema de carregamento dos passes” que é “mais seguro para o erário público”. Também a administração dos TST garante não ter conhecimento da troca das requisições por dinheiro nas suas bilheteiras, prática que diz não ter autorizado. Os administradores adiantam ainda que vão levantar um inquérito de averiguações e que as bilheteiras da transportadora irão deixar de vender títulos de transporte aos agentes da PSP. “Estamos em contacto com a competente área administrativa da PSP para que os títulos passem a ser vendidos directamente no portal Viva da Internet”, acrescentam os responsáveis pela transportadora rodoviária de passageiros.
Para a direcção nacional da PSP, porém, “não é possível efectuar a troca das requisições dos passes de transporte por dinheiro nas bilheteiras das operadoras, pelo que tal não pode acontecer”. O porta-voz da direcção nacional da polícia, Paulo Flor, diz que “não tem conhecimento de situações como a descrita” – que, “a existir, configuraria a prática de ilícitos tanto pelos polícias como pelos funcionários das operadoras de transportes, os quais estariam sujeitos às sanções criminais e disciplinares que decorreriam da aplicação da lei”.
Caso as autoridades estejam de facto dispostas a investigar o caso, isso não se revelará difícil: é que o chip dos cartões fornece informação sobre a data do último carregamento, bem como da última validação feita, neste caso nos autocarros. Dados esses que, de resto, também constam dos registos das operadoras de transportes.
Fraudes começaram há muito, com senhas de gasolina
O presidente do Associação Sindical dos Profissionais de Polícia, Paulo Rodrigues, diz desconhecer o sistema que propicia a muitos colegas da Margem Sul um acréscimo salarial ao final do mês, mas não se mostra admirado. E recorda que durante muito tempo, e até meados dos anos 80, polícias e outros funcionários públicos equiparados podiam comprar senhas de combustível a um preço abaixo do custo de mercado – privilégio que terminou depois de se descobrir que havia quem as vendesse a amigos e conhecidos. A disponibilidade permanente para entrar ao serviço a qualquer momento era o que justificava os polícias usarem os transportes públicos sem pagar.
Paulo Rodrigues diz que a maioria das empresas públicas ainda paga aos trabalhadores uma compensação pelo trajecto casa-trabalho: “Este não é um privilégio da polícia. Com a diferença que nós também usamos os transportes públicos em serviço”. Neste momento a gratuitidade dos transportes para os agentes da PSP e para a GNR está limitada ao percurso entre a residência e a esquadra ou o quartel onde se encontram colocados, até a um máximo de 50 quilómetros.