Menina cigana é mãe aos 14 e aos 15 anos e o marido está no banco dos réus
Tribunal de Aveiro começa hoje a julgar um caso que envolve uma menor mãe de dois bebés. Marido, mãe, padrasto e sogros estão acusados, em co-autoria, de dois crimes de abuso sexual de criança. Esta história tem usos e costumes da comunidade cigana. Como vai a justiça analisar este processo?
Em Fevereiro do ano passado, o marido-primo, a mãe, o padrasto, os sogros-tios da menina cigana são detidos pela Polícia Judiciária de Aveiro e ouvidos em tribunal. O caso chega à justiça através da comissão de protecção de menores e o processo acaba por seguir para julgamento. Os arguidos ficam proibidos de contactarem com a menor e obrigados a apresentarem-se duas vezes por semana no posto policial da sua área de residência – medidas entretanto extintas por terem sido ultrapassados os prazos máximos de duração previstos na lei. À mãe é ainda suspenso o exercício do poder parental. Na altura da detenção, a menina é institucionalizada com os dois filhos. Antes disso, ela e ele estudam numa escola em Vagos.
A 16 de Janeiro deste ano, o MP deduz acusação com base nos interrogatórios judiciais feitos aos arguidos. A menor também é ouvida na presença da mãe. Segundo o despacho de acusação, a que o PÚBLICO teve acesso, desde o dia do casamento que o rapaz “manteve relações sexuais de cópula completa com a menor, assim satisfazendo os seus instintos libidinosos”. Ela tinha 12 anos, ele 17. Ele é acusado de se ter aproveitado “da compleição física” da menor e da partilha da mesma casa para praticar “actos sexuais de relevo”, consciente de que ela poderia engravidar, como aconteceu por duas vezes, limitando assim, escreve o MP, “a liberdade de autodeterminação sexual” da menina. As famílias estão também acusadas por terem acordado e propiciado o casamento e, por conseguinte, os actos sexuais. O MP fala num “acordo de vontades” e numa “união de esforços” das famílias para que os seus filhos se juntassem e passassem a viver em casal. Sustenta que os arguidos agiram de “forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei” e sublinha ainda que todos os intervenientes no processo sabiam a idade da menina.
Em Maio do ano passado, na altura em que estava institucionalizada, e sem poder contactar com qualquer um dos arguidos, a menor é novamente ouvida por um juiz de instrução criminal, desta vez sozinha. Terá então mudado a história inicial. Nas declarações para memória futura, terá contado que fugiu com o namorado do acantonamento cigano, por sua insistência, e quando os dois regressam está grávida do primeiro filho. As famílias acolhem-nos. Nesta versão, terá negado o casamento cigano antes da primeira gravidez, relatará uma cerimónia simples de união depois do regresso ao acampamento.
Ela tem agora 16 anos, ele 20, em Julho fará 21. Há quase dois meses, quando fez 16 anos, sai da instituição, casa-se pelo civil com o pai dos seus filhos, com o consentimento da mãe. Emancipa-se pelo casamento. Ele está inscrito no centro de emprego, procura o primeiro trabalho. Já não está no acantonamento cigano, vivem numa casa arrendada em Vagos com a mãe dela.
Pressão social
Maria José Casa-Nova, investigadora da Universidade do Minho e coordenadora do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos da mesma faculdade, investiga a população cigana portuguesa desde 1991. Tem vários livros sobre o tema. É conselheira do Alto Comissariado para as Migrações para a monitorização da implementação da estratégia nacional para a integração das comunidades ciganas e integra o conselho científico do Observatório das Comunidades Ciganas, recentemente criado. Na sua opinião, o foco deste caso deve estar nos pais e não no jovem casal.
“Independentemente da vontade, constrangida pelos processos de socialização, da adolescente – ou seja, manifestar desejo ou não de casar com o jovem em questão -, engravidar aos 13 anos e ser mãe aos 14, pode ser considerado uma violência física e psicológica, ao mesmo tempo que impossibilita a adolescente de viver a sua juventude. Por outro lado, a jovem foi retirada do meio familiar e colocada numa instituição, desconhecendo se por vontade própria ou não, o que se torna significativo na apreciação do caso”. “Criminalizar um jovem, o marido, que desconhecemos se também foi vítima de constrangimento familiar, não é, na minha perspectiva, fazer justiça”, refere. A ênfase deve, portanto, ser colocada nos pais dos jovens e nas suas motivações. “É usual dizer-se que a justiça tem de ser cega para ser justa – ou seja, aplicar igualmente a lei, independentemente do caso em análise. Ora se esta asserção é verdadeira para determinadas situações, não o é para outras em que a justiça, para ser justa, necessita de ter em atenção os contextos e os processos dos quais resultaram determinado tipo de comportamento. Isto é válido para qualquer situação em julgamento”, acrescenta.
Situações com estes contornos são, neste momento, raras na comunidade cigana. Na população cigana portuguesa, as raparigas casam-se habitualmente entre os 14 e os 17 anos e os rapazes entre os 16 e os 20. Nessas idades, são socializados para o casamento que permite manter a coesão do seu próprio grupo e, por outro lado, desresponsabilizar os pais das raparigas relativamente ao comportamento das suas filhas, como se elas “não tivessem vontade ou responsabilidades próprias”. E há ainda a pressão social exercida sobre os jovens casais para que tenham filhos, para que, dessa forma, assegurem a descendência e contribuam para o fortalecimento do grupo. “A pressão social sobre as mulheres é particularmente forte”, comenta.
Na sua perspectiva, o caso deve ser analisado como excepção que é, e que também acontece na sociedade maioritária, e não como regra do que acontece na comunidade cigana. “Estas excepções, gravidezes em idades prematuras, acontecem dentro do grupo sócio-cultural alargado e não contribuem para a construção de uma imagem negativa acerca de sociedade maioritária”, lembra. Trata-se, portanto, de um caso que acontece excepcionalmente e que não pode ser apresentado como uma imagem generalizada da população cigana, sob pena de aumentar o estigma e manter estereótipos. Até porque, ao fazê-lo, estar-se-ia "a fechar esta população numa imagem que não é a sua – tratando-a como um todo homogéneo – e a criar uma ideologia, ou seja, uma falsa consciência, generalizando a um colectivo uma prática que é de alguns”.
A investigadora salienta ainda o papel da educação escolar que pode funcionar como forma das jovens ciganas alargarem os seus horizontes em termos de futuro, para que aprendam a usufruir dos seus direitos de cidadania e percebam que “as gravidezes em idades precoces lhes condicionam oportunidades na vida”.
Hoje à tarde, no Tribunal de Aveiro, cinco arguidos responderão por dois crimes de abuso sexual de menor. As famílias ciganas não incluíram quaisquer nomes como suas testemunhas. Estarão em tribunal com os relatórios sociais elaborados no âmbito deste processo. Como provas, o tribunal apresenta elementos clínicos, certidões de nascimento da menor e dos seus dois filhos, um auto de busca, uma reportagem fotográfica, bem como as declarações prestadas pela menor. Um elemento de cada família deverá prestar depoimento no início do julgamento. A jovem foi chamada a depor pela defesa, embora a decisão de a ouvir ou não esteja nas mãos do juiz.
Ricardo Couceiro, do escritório Couceiro & Oliveira Advogados, é o advogado de defesa e sabe que tem nas mãos um caso pouco comum. O que é igual, na sua opinião, deve ser tratado de forma igual, o que é diferente de maneira diferente. A lei é igual para todos, mas aqui há, em seu entender, uma componente cultural que deve ser tida em conta. “Não estamos a falar de um caso de abuso sexual como habitualmente é entendido. Estamos a falar de uma situação com especificidades e condicionalismos próprios, com regras e costumes de uma comunidade, e que tem repercussões directas e manifestas na forma como as coisas são tratadas”, afirma ao PÚBLICO. Este processo, defende, deve ser tratado com as suas especificidades. “É uma questão de integração, de socialização. É uma questão de educação, uma questão de demonstrar às comunidades que há tradições que são ou não aceitáveis, mas tem de haver pedagogia neste processo”, refere.
A pena para estes casos vai de ano e meio a 12 anos de prisão. “Isto é dizer à comunidade cigana que este caso é tão grave quanto traficar droga, já que a moldura penal é a mesma”. O despacho do MP também merece um comentário a Ricardo Couceiro. “A versão da acusação não é, de todo, a versão que é trazida pelos intervenientes”.