Vamos tomar café a Évora no meu avião
Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. É possível viajar pela maior parte do território, e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras.
Aérodromo de Tires, domingo, 10 da manhã. Luís Laureano Santos, 71 anos, e Artur Caracol, 80 anos, chegam, cada um no seu carro. O avião, um Cessna Skyhawk 172 azul e branco, monomotor de asa alta, quatro lugares, motor de 220 cavalos, velocidade máxima de cerca de 300 km/h, matrícula CS-AYZ, é puxado do hangar à mão. O plano de voo está feito, de Cascais a Évora, seguindo pela costa até ao estuário do Sado, depois em linha recta rumo a leste.
Luís faz a inspecção exterior. Flaps, aileron, hélice, todos os parafusos estão no sítio, leme de profundidade, leme de direcção… O Cessna tem 40 anos, mas isso nunca foi problema para um avião. Terminada a volta, faz-se a purga, confirmando que não há condensação no combustível.
No cockpit, Luís fixa ao manche o seu iPad Mini, onde tem o plano de voo e todas as coordenadas, através do software Air Navigator. Artur fixa o seu tablet especial de aviação, com cronómetro analógico acoplado. Em seguida pega no vetusto papel envolvido em plástico da checklist de inspecção de voo, que contrasta comicamente com a sofisticação electrónica dos seus gadgets pessoais.
Auscultadores na cabeça, Artur pede autorização de descolagem à torre de controlo. “Válvula de combustível ligada”, diz ele para Luís.
“Sim.”
“Equipamento eléctrico desligado.”
“Tá.”
“Fusíveis.”
“Tá.”
“Bomba eléctrica de combustível desligada.”
“Tá.”
“Travões bloqueados.”
“Sim.”
“Flaps.”
“Check.”
Percorrida toda a checklist, é altura de accionar o motor e avançar para a pista.
“Ignição.”
O motor de arranque engasga-se um pouco, como num carro velho, mas lá pega, com um grande estremeção. Tudo vibra e abana, como uma tenda no meio da tempestade, segue-se o resto da inspecção de voo, o contacto com a torre. “Autorização para descolar, Alfa Tango Yankee Zulu, em direcção à Cova do Vapor. Posição de espera na pista 3.5. Código 3212. Vento Norte 360.”
Luís vai aos comandos. No seu iPad surgem três círculos sobre o Googlemaps, representando as zonas definidas que vamos cruzar. O avião descola, sobrevoa as praias de Cascais a baixa altitude, atravessa o Tejo, sobre o Bugio, acompanha a linha da Costa de Caparica. Velocidade, 200 km por hora, a mil pés de altitude (cerca de 300 metros). A partir da lagoa de Albufeira, subimos aos 1500 pés. É obrigatória a baixa altitude, devido ao aeroporto de Lisboa e respectivo tráfego comercial, o que nos coloca numa posição vulnerável à turbulência. A causa é o calor do solo, que provoca a elevação de massas de ar, explica Luís. “Quanto mais baixo, mais vento.”
A sensação é de fragilidade total. Dançamos no espaço. Por vezes parece que a aeronave não segue em frente, mas para os lados, cedendo a um empurrão. Outras vezes é como se levássemos um pontapé, que nos atira brusca e violentamente para cima ou para baixo. Em certos momentos, sentimo-nos numa cápsula pendurada por um fio, balançando perigosamente, mas presa a algum invisível cabide do céu. De repente caímos, como quem tropeça num degrau.
Nos headphones, ouvimos, em inglês, as comunicações da torre de Lisboa, que incluem todos os voos comerciais, misturados com trocas de mensagens entre a torre de controlo e tripulantes de aviões ligeiros. A amálgama sonora faz-nos mergulhar numa cisterna tépida, é uma espécie de senha para um universo multidimensional, sem gravidade, livre.
A torre, agora, depois de Setúbal, já do controlo aéreo militar, avisa-nos de um avião que vem em sentido contrário, a 2000 pés. Lá em baixo, a península de Tróia, o estuário do Sado, verde, absolutamente selvagem. A serra da Arrábida, em formas e tons que é impossível ver do solo.
Com o aumento da altitude, entramos numa zona calma. Luís larga as mãos do manche e dos comandos. Artur sorri, dir-se-ia que de pura felicidade. Não há dúvida de que isto provoca uma certa embriaguez. Tudo é relativo, confuso, maravilhoso.
Surpresa, agora que apontámos a leste: o território tem áreas imensas sem vestígios de civilização. E muitos lagos. Água a refulgir entre promontórios verdes por todo o Alto Alentejo. No meio do nada, surgem palácios secretos. Em zonas recônditas, abrem-se pedreiras infectas, como feridas. As estradas são traçadas em perfeitas linhas rectas. Ali, um cemitério faz lembrar um canteiro. Por todo o lado há pistas de aviação, particulares, por vezes mínimas, onde, se quiséssemos, poderíamos aterrar.
Mas avançamos até Évora, que surge, extensão de casario branco, no horizonte. Atenção que há actividade de pára-quedismo no ar, avisa a torre do aeródromo de Évora. Aterramos sem incidentes. Saímos e vamos tomar um café.
Luís e Artur fazem isto todas as manhãs de domingo, há 40 anos. Por vezes, vão a Santarém ou a Portimão. Mas não usam só o avião, que é deles, comprado a meias, para estas escapadelas de lazer. Luís, que é advogado, desloca-se no Cessna para ir a julgamentos, em Faro, ou Bragança. É muito mais rápido, e até mais barato do que ir de carro, explica. Artur, gestor de empresas, voa muitas vezes para reuniões, em vários pontos do país. Vão muitas vezes sozinhos. Metem-se no seu avião e partem, para onde é preciso. O país está cheio de pistas de aviação, enumeradas em listas próprias e identificadas no próprio GPS. É quase possível estacionar à porta de casa ou do escritório.
Um avião ligeiro (o caso do Cessna de Luís e Artur), ou ultraligeiro, pode voar praticamente por todo o país. O mapa do espaço aéreo mostra as zonas restritas, afectas a áreas militares específicas, e as formas de as contornar, através de “túneis” aéreos, ou usando o espaço aéreo não controlado, abaixo dos mil pés de altitude.
Todo o território está coberto por comunicações e controlo, quer seja dos aeroportos e aeródromos, quer pelas torres de controlo militar, de cuja ajuda qualquer aeronavegante pode beneficiar.
Ao contrário da dos controladores aéreos oficiais (que só existem em Lisboa, Porto, Faro e Cascais), as informações e instruções fornecidas por estes, tal como as que existem em muitos aeródromos municipais, como o de Évora, são apenas indicativas, não obrigatórias. Trata-se de serviço de AFIS (Aerodrome Flight Information Service), a que os pilotos podem recorrer, embora não sejam obrigados.
Luís e Artur lembram-se de quando toda a informação era dada apenas com gestos ou luzes, e toda a navegação era feita à vista, apenas com a ajuda de uma bússola. Quando se entrava numa nuvem, era o pânico. O GPS veio revolucionar a navegação aérea.
Luís lembra-se do velho Tiger em que voava, há algumas décadas, onde o velocímetro funcionava com uma chapa que se torcia com a velocidade do vento. Não era possível, nessa altura, distinguir entre a velocidade em relação ao ar circundante, e a velocidade em relação ao solo, que são completamente diferentes. Portanto também não era possível saber a que distância nos encontrávamos do destino.
Os sistemas de comunicações também são uma inovação recente para a maior parte das aeronaves. Dantes, um avião ligeiro estava sempre sozinho no céu, e era obrigado a voar segundo as regras VFR (Visual Flight Rules). Hoje, predomina a IFR (Instrument Flight Rules).
Luís tem o brevet desde os 17 anos, quando, para fugir às outras actividades da Mocidade Portuguesa, se inscreveu no núcleo de aviação. Também fez o curso de jornalismo. Ficou tudo de graça. Hoje, já tem cerca de 900 horas de voo, devidamente registadas na sua caderneta, que actualiza a cada aterragem.
Artur gosta de aviões desde miúdo, quando, perto da base militar de Sintra, onde vivia, se lembra de ficar deitado no chão a observar as manobras dos caças. Mas só aos 39 anos conseguiu tirar o brevet. É um verdadeiro apaixonado, compra todos os gadgets de última geração (tem uma vasta colecção de sistemas de GPS), aprende novas técnicas, adora fazer acrobacias e “manobras de recuperação”. “Gosto da turbulência”, diz ele. “Gosto de fazer aterragens com ventos instáveis, coisas que a maioria dos pilotos evita. Eu tenho prazer com essas sensações. Não tenho medo. Sempre que posso, treino manobras complicadas.”
Luís prefere os voos calmos, embora não perca o sangue-frio nas piores situações de emergência. Como quando teve um curto-circuito a bordo, que fez deflagrar um incêndio, e parar o motor, e foi preciso desligar, um a um, todos os fusíveis, até identificar onde estava o problema, repará-lo e voltar a ligar os circuitos. Tudo isto sem descurar a pilotagem, e sempre atento ao solo, seleccionando os espaços abertos onde faria a aterragem de emergência, se necessário. Pode ser um campo de cultivo, um estádio, ou até uma auto-estrada.
Uma vez, num dos seus voos de domingo, Luís e Artur esqueceram-se de verificar o combustível. Mal descolaram, perceberam que os depósitos estavam vazios. A primeira hipótese que lhes ocorreu foi a Praia Grande, perto de Sintra, para a aterragem de emergência. Mas como o motor não parou logo, seguiram até ao cabo da Roca, em cujo planalto acharam que conseguiriam “pôr o avião no chão”. E assim sucessivamente até regressarem ao aeródromo. Afinal a reserva do depósito foi suficiente.
“Gosto muito de voar. Lá em cima, estamos isolados do mundo”, é como se sente Luís Laureano. “É bom para lavar a cabeça. Desligamo-nos dos problemas, não temos de aturar as pessoas cá em baixo. É uma espécie de tempo fora do tempo.” Já Artur fala da sensação de liberdade, de poder e de isolamento completo. Não consegue passar muitos dias sem voar.
As vidas profissionais de ambos não têm nada que ver com aviação, mas estão envolvidos em várias actividades relacionadas, como as associações (Luís foi presidente da AOPA — Associação de Operadores e Pilotos de Aeronaves) e as iniciativas dos clubes, como os encontros nacionais e internacionais, e as voltas aéreas, que incluem concursos, demonstrações e jantaradas. Todas as quartas-feiras, aliás, Luís e Artur almoçam juntos, num restaurante na zona do Saldanha, para falarem de aviões.
Ao contrário do que se possa pensar, o hobby da aviação não é caro, dizem eles. Um avião como este custa, novo, cerca de 400 mil euros, com um nível razoável de equipamento extra. Usado, no entanto, pode comprar-se por 50 mil euros. E raramente um piloto compra um avião sozinho. Organiza-se numa sociedade com um ou vários amigos e dividem os custos.
O combustível não fica caro, se compararmos com os automóveis. Custa 1,75 euros por litro, sendo que a aeronave consome cerca de 35 litros por hora e viaja a velocidades de cruzeiro de mais de 200km por hora. Ou seja, uma viagem até Faro, considerando que a distância em linha recta é mais curta, e que não há portagens no ar, custa cerca de 60 euros e demora pouco mais de uma hora.
A taxa de aterragem num aeródromo é de 10 a 20 euros, embora seja gratuito no aeródromo onde o avião está estacionado, serviço que custa uns 150 euros por mês.
O curso de pilotagem, com exame e obtenção de brevet incluídos, custa 7500 euros, através do Aeroclube de Portugal. E o aluguer de um avião ligeiro, para quem opta por não comprar, fica, no aeródromo de Cascais, por 150 euros por hora. Além disso, é preciso ainda contar com as revisões periódicas, que são obrigatórias, para que o avião possa voar.
No caso da aviação ultraligeira, tudo isto pode ser reduzido para mais de metade.
Estamos no campo de aviação de Benavente, a capital portuguesa dos ultraleves. Paulo Cunha, 57 anos, é um dos proprietários do campo e da escola de aviação, Aerolazer, empresa que também representa e vende em Portugal várias marcas de aviões ultraleves. É também presidente da APAU (Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve). De profissão, é médico, dá assistência técnica a sete clínicas espalhadas pelo país e percorre-as de avião. Pelas suas contas, gasta, para ir de Benavente à sua clínica de Portimão, cerca de 20 euros, já que o seu Dynamic gasta uma média de 12 litros por hora. E faz a viagem em pouco mais de meia hora, enquanto de carro gastaria mais de 60 euros, incluindo portagem, e demoraria umas quatro horas.
Como é um dos locais onde se desloca com mais frequência, tem um carro velho estacionado no aeródromo de Portimão, para as deslocações locais, e vai sempre de avião. “Voar faz parte da minha essência”, explica. “Se ando um mês sem voar, não ando bem. Isto é a minha saúde mental. Nunca precisei de tomar um Xanax.”
Um ultraleve é um avião como outro qualquer, apenas mais leve. Segundo as regras adoptadas em Portugal (que, no caso dos ultraligeiros, diferem muito em cada país), não pode pesar mais de 450 quilogramas. Outras restrições incluem não poder voar durante a noite e não estar habilitado a usar as regras de voo por instrumentos (IFR). Apenas VFR, o que significa mais liberdade e sensibilidade. Um ultraleve só precisa de um piloto, embora tenha quase sempre dois lugares. E pode voar em todas as zonas controladas do espaço aéreo, desde que possua comunicações e sistema de Transponder, que permite ser localizado pelos radares.
Mas, no essencial, um ultraleve obedece aos princípios de um avião, e é também isso que o define: manobra-se segundo três eixos, como explica Rui Augusto, técnico de manutenção de aeronaves e de motores Rotax (a quem chamam o “ginecologista”, por trabalhar “onde os outros se divertem”): o leme de direcção, ou vertical; o leme de profundidade e os aillerons.
Um Quicksilver como este estacionado junto ao bar do aeródromo, e que se pode guardar numa garagem, possui todas estas características. É, para todos os efeitos, um avião, embora pareça um asa delta com motor. É composto por uma estrutura simples, uma hélice ligada ao motor, que fica à vista, asas de tela e dois lugares sentados, ao ar livre. Mas lá está o manche, em forma de joystick, com que se faz a geringonça subir ou descer, virar para a direita ou esquerda, e os pedais, que permitem inclinar as asas, para uma viragem aerodinâmica.
Assemelha-se a um insecto gigante e proporciona sensações únicas. É como progredir no ar sem qualquer veículo, elevados por impulsos do próprio corpo. É a sensação pura de voar, o mais perto que podemos estar de Ícaro.
Sente-se o vento no rosto e o mundo a toda à volta, líquido, irisado e volúvel, como no interior de uma bola de sabão.
Os elementos estão à solta, mas deixam-se tocar, próximos e dóceis. As movimentações térmicas, as massas de ar, que se vão tornando densas, depois da descolagem, e acabam, como descrevia Saint-Exupéry, por ficar superfícies sólidas, onde nos podemos agarrar.
Um Quicksilver não é muito diferente das maquinetas dos irmãos Wright ou Santos Dumont, embora pareça muito mais simples. A tecnologia aeronáutica evoluiu desde então no caminho da sofisticação, mas também da singeleza, da essência da ideia. E é dessa que o Quicksilver é um expoente avançado, inteligentemente fiel às visões iniciais, do Ornitóptero de Leonardo Da Vinci à Passarola de Frei Batolomeu de Gusmão.
“Não vou com isto até Bragança”, diz Paulo Cunha. Não é um avião para longas viagens, mas para pequenos passeios locais. É fácil descolar e aterrar, e podemos fazê-lo dezenas de vezes numa tarde, por pura distracção, como quem pega numa bicicleta. Pilotos profissionais de grandes companhias aéreas vêm até aqui no seu dia de folga, para dar umas voltas de Quicksilver.
Pedro Simões, empresário de 39 anos, tem dois aviões: um portentoso WT9 Dynamic e um Quicksilver. O primeiro, diz, vendia-o, se surgisse uma boa oferta. Mas por nada deste mundo se desfaz da caranguejola voadora.
Um ultraleve sofisticado como o Dynamic de Pedro Simões pode custar, com uns dez anos de idade, 70 mil euros. Mas há modelos muito mais baratos. Como um que está à venda num dos hangares da Aerolazer por 15 mil euros. Se um grupo de cinco recém-licenciados da escola decidir comprá-lo, pagará 3 mil euros cada um, e ficarão proprietários de um avião, que poderão usar em qualquer altura.
O curso de piloto de ultraleve não é equivalente ao da aviação ligeira, embora, no futuro próximo, se preveja a introdução de um sistema de créditos que permitirá, com uma extensão de aulas e um novo exame, fazer o upgrade de uma licença para a outra.
Dentro da aviação ultraligeira, há ainda dois tipos de licenças, correspondentes a dois cursos diferentes. O que permite apenas pilotar aeronaves do tipo 1, mais simples, e o que é próprio para os aviões tipos 2 e 3. O primeiro curso tem um custo total, exame incluído, de 3200 euros, o segundo de 4500.
Os licenciados que queiram alugar aviões pagarão 80 euros à hora, combustível incluído. Mas grande parte dos novos pilotos tenta comprar o próprio avião, não apenas porque acaba por sair mais em conta para quem tencione de facto voar muitas horas, mas também porque é impagável a sensação de possuir um avião.
Ser dono de um italiano Blackshape, de linhas futuristas, de uma aeronave simples, barata e retro como o francês Skyranger (custa cerca de 40 mil euros, novo), um clássico Pioneer 300 (também francês), um eslovaco sofisticado como o Aerospool WT9 Dynamic, ou mesmo ter um básico Quicksilver, “é um privilégio”, como diz Pedro Simões, um dos mais antigos frequentadores do aeródromo de Benavente.
“Sinto-me um privilegiado”, diz ele, sentado no cockpit do seu WT9 Dynamic. É um cubículo onde mal cabe piloto e passageiro, sentados lado a lado. O painel de comandos e instrumentos é próximo e complexo, o manche em forma de joystick, o tecto totalmente transparente. Além do altímetro, velocímetro, indicador de horizonte artificial, de “climb”, de combustível, e os vários instrumentos básicos, a aeronave está ainda equipada com todos os gadgets possíveis, relacionados com comunicações, orientação, navegação, etc. Além dos 70 mil euros que o avião custou, Pedro gastou mais 100 mil em equipamento extra.
“Gosto de ter tudo no meu avião. Isto é um sonho que eu tenho desde sempre e que realizei quando pude. Faz parte da minha vida.” Desde que entramos no avião, enquanto o motor aquece, na descolagem, no voo a 250 km/h sobre os campos ribatejanos, nas manobras de revirar o estômago como o brusco pranchamento da asa de 60 graus a 1500 pés, Pedro não pára de falar.
Conta como usa frequentemente a aeronave para se deslocar a reuniões de trabalho, em Beja ou noutras cidades, como vai a todo o lado fechar negócios da sua empresa de sistemas de rega, como os clientes ficam pasmados e seduzidos quando, depois de lhes oferecer uma boleia, se vêem de repente a subir aos céus, sentados na cabina do Dynamic.
Fala sem parar, vê-se que está radiante e liberto, senhor de si, magnânimo e filosófico, aos comandos do seu Dynamic.
Pilotar parece tão fácil. E é. Vertiginosamente fácil e seguro, ou Pedro não teria deixado os comandos nas mãos de um repórter que nunca se tinha sentado num cockpit.
O mais surpreendente é que não é preciso fazer nada. O avião voa sozinho. Vai como se estivesse vivo e não precisasse de instruções. No entanto, os comandos são assustadoramente sensíveis. Um toque leve no manche provoca logo uma guinada. Com um empurrão no manípulo, o avião afocinha abruptamente, e é difícil reprimir o desejo de fazê-lo saltar para cima, com a fúria de um puma dos céus.
“Este é um avião de viagem”, vai dizendo Pedro, enquanto, por um longo período, seguimos a direito, sobre campos, rios e aldeias. Mas a verdade é que seria difícil, depois, recordar que trajecto ou direcção seguimos. No chão, sabemos sempre por onde vamos. Há sempre uma estrada, referências e destinos. No ar, avançar não significa ir a lado algum.
Todos os pilotos concordam que os aviões transmitem uma grande sensação de segurança. Mas também que essa sensação é, em grande medida, falsa, e é isso que provoca os acidentes.
Tem havido muitos, nos últimos anos, envolvendo aeronaves ligeiras e ultraligeiras, e provocando frequentemente a morte aos tripulantes. Os casos, alguns deles ocorridos com amigos dos pilotos com quem falámos, são amplamente debatidos nos convívios de Benavente ou de Tires. Devem-se quase sempre a excesso de confiança dos pilotos, explicam.
Os aviões são veículos muito seguros. Mesmo se estão muito velhos, têm todas as condições para voar, desde que com as revisões feitas. Num avião, cada peça tem um prazo de validade e é substituível. E não se pode voar sem ter a manutenção em dia. Por isso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com um automóvel, não faz sentido dizer que um avião está velho.
Pedro Simões, que viaja várias vezes por semana de ultraleve, diz que deixou de andar de moto por ser demasiado perigoso. “Se forem cumpridas todas as regras, nada acontece”, diz Paulo Cunha. “Há sempre uma maneira de pôr o avião no chão.”
Pedro resolve exemplificar. Desliga o motor do seu Dynamic. O hélice fica a trabalhar apenas ao ralenti, sem propulsão. Não se passa nada. O avião não cai. Continua a voar, embora comece, lentamente, a perder altitude. Há tempo suficiente para procurar uma pista de emergência.
“Ali aquele campo de golfe”, diz Pedro. Dirige para lá o avião, e começamos a descer. “Podemos partir uma roda, mas não vamos morrer, de certeza”, continua ele, muito calmo. O campo de golfe está à nossa frente, mas pouco antes de tocarmos o relvado, o motor volta a trabalhar, e subimos, suavemente. “Podíamos ter aterrado ali. Há sempre um sítio. Podia ser na estrada.”
Artur Caracol conta uma história passada no tempo da sua instrução. Ficara apreensivo e com dúvidas, depois de um instrutor e um aluno da mesma escola terem tido um acidente mortal. Mas o seu instrutor decidiu levá-lo para uma experiência. Durante a aula, levou o avião muito alto, e depois apontou-o ao chão, desligando o motor e deixando-o em perda. Começaram a cair a pique, mas ele não fez nada. Até que a certa altura o aparelho se endireitou, sozinho, e recomeçou a planar. “Estás a ver?”, disse o instrutor. “Os aviões foram feitos para voar.”
Quando há acidentes, diz Luís Laureano Santos, “é o piloto que faz cair o avião, e não o avião que faz cair o piloto”. Ou seja, tudo se passa como se os aviões se recusassem a cair, e só um número muito restrito de pilotos, particularmente habilidosos, os conseguissem fazer despenhar. Para se salvarem, bastava não terem feito nada.
Mas os pilotos têm dificuldade em estar quietos. Muitos gostam de testar os seus limites, de facilitar os procedimentos e de se exibirem. “Podemos fazer estas manobras [o pranchamento da asa] a alta altitude, porque se acontecer alguma coisa, temos espaço para corrigir a manobra”, diz Pedro. “Mas a alta altitude ninguém nos vê.”
Há quem não resista a exibir-se voando baixinho. Segundo Álvaro Neves, director do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves, (GPIAA), há uma idade crítica. Pilotos entre os 45 e os 55 anos, com uma média de 250 a 300 horas de voo, tendem a experimentar uma sensação de confiança excessiva. Começam a facilitar, a ultrapassar os limites, e correm riscos. “Acham que são os maiores pilotos do mundo. Fazem manobras acrobáticas, que são proibidas. Mas um piloto nunca é suficientemente experiente.” Nos acidentes dos últimos anos, as causas têm sido, em 98%, devidas a factor humano.
Além disso, na classe dos ultraleves, há muito quem descure as normas de segurança. “É um tipo de aviação muito livre, e é bom e normal que assim seja. Mas nem todos associam essa liberdade a responsabilidade. Há pessoas com uma atitude agressiva na pilotagem.” Segundo Álvaro Neves, que também é piloto, muitos proprietários de aviões guardam-nos nas suas quintas, em garagens sem assistência técnica profissional, descolam e aterram em pistas não certificadas, que têm dentro das suas propriedades ou nas de amigos.
“Das 550 aeronaves ultraleves que existem registadas em Portugal, cerca de 50% estão nessas condições, e não cumprem as regras de manutenção e segurança.”
Nesse aspecto, a base de Benavente, diz o director do GPIAA, é uma “unidade de referência”. E a Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve (APAU), presidida por Paulo Cunha, está a trabalhar com o GPIAA na tentativa de trazer para a legalidade todos os proprietários de ultraleves.
E depois há ainda o problema de quem não nasceu para isto. “É preciso sentir o avião. Os nossos pés são as suas rodas, os nossos braços são as asas”, explica Luís Laureano. “Há pessoas que são pilotos à nascença. Depois só têm de aprender.”
Para Artur Caracol, o importante é ter a capacidade de manter a calma em todas as situações, não entrar em pânico. “É preciso saber cair.”
Pedro Simões, quando foi fazer o curso, já sabia pilotar, porque passara centenas de horas agarrado ao simulador de voo, no computador. Mas teve de fazer as regulamentares 140 horas teóricas e mais 40 de voo.
Durante o curso, não antes, há um momento em que o futuro piloto percebe se foi ou não feito para aquilo: quando é largado pela primeira vez. É uma ocasião mágica e ritual, que surge sempre de surpresa. O instrutor é que decide quando chegou a altura e só o comunica ao aluno no próprio dia. Tanto pode ocorrer às 30 horas de voo, como às dez.
Aterram, o instrutor sai do avião e diz para o aluno: Vai! E ele, sem estar à espera, tem de descolar e voar sozinho. “É um momento incrível”, recorda Artur. “É o voo mais importante da nossa vida”, diz Paulo. “É o momento da verdade”, admite Pedro.
Depois, se correr bem, as aulas continuam normalmente até ao fim, com o instrutor ao lado.
Laureano foi largado com apenas sete horas de voo. Artur com oito. O instrutor, o tal que meteu o avião a pique sem o conseguir despenhar, travou na pista, saltou fora num ápice e gritou: “Agora vai e parte esta merda toda.” Quarenta anos depois, Artur ainda não conseguiu.