Sampaio da Nóvoa: “O meu ponto de partida é o da crítica das políticas de austeridade”
Considera “insuportável” a ideia de “arco da governação” e garante que a coisa que sabe fazer melhor é promover entendimentos. “Estabilidade, para mim, não é ficar tudo na mesma.” Candidata-se para “construir um projecto de mudança em Portugal e dar um contributo para a mudança na Europa”.
Se lhe pedisse para se apresentar aos portugueses como o faria?
[Pausa] Do ponto de vista biográfico, como alguém que é do Norte, de Valença, que viveu sempre no Minho até aos 10 anos de idade, muito marcado pela minha mãe, mas sobretudo pela família do meu pai, com os seus antepassados, como Alberto Sampaio, e toda essa Geração de 70. Uma família do Norte, muito religiosa, católica, unida. Continuamos a encontrar-nos nas festas de Páscoa, Natal. Com uma marca muito forte do meu pai, juiz, sobretudo pelo lado da independência, da imparcialidade. E depois um percurso meu, sempre marcado por uma certa diferença. Por raramente ou nunca ter optado pelo caminho mais previsível. Gosto de pensar-me como alguém que promove mudanças. Desde os meus 16 anos, quando cheguei a Coimbra, até hoje, já lá vão 44 anos…, tive uma preocupação muito grande com as questões políticas, com as causas sociais, da igualdade, que marcam o que é hoje a minha maneira de pensar.
Estudou Matemática, Teatro no Conservatório, Ciências da Educação e História. Foi inquietação ou inconstância?
Foi sempre inquietação. Ontem [quinta-feira] o professor José Barata Moura, que teve a generosidade de proferir o elogio do meu doutoramento honoris causa na Universidade do Algarve, numa passagem da sua intervenção brilhante, dizia que eu era um transportador de desassossegos. Eu revejo-me nesta frase. Para lhe dar um exemplo: luto até ao último minuto por uma coisa, mas ainda ela não está acabada, eu já estou a pensar noutra.
Como é que este percurso o pode ajudar, nas suas ambições actuais?
É muito difícil falar de mim…
Mas tem de se dar a conhecer, porque só as elites o conhecem. Tem essa noção?
Mais ou menos… É muito impressionante o fenómeno de notoriedade das últimas semanas. Não posso ir a lado nenhum sem que venha uma pessoa falar comigo, que me cumprimente, que me dê um recado.
Isso ainda não o incomoda?
Não me incomoda absolutamente nada. As pessoas colam à vida académica, e percebo que colem, este peso do professor catedrático, que é uma designação pela qual nunca me apresento, Sou professor, ponto. Isso é mil vezes mais importante. Colam à ideia do reitor um elitismo que eu não tenho. Na universidade jogava à bola com os funcionários da reitoria. Hoje jogo à bola todas as semanas com alguns dos meus amigos de há 40 anos. Mas voltando à pergunta inicial, vivi em tantas realidades diferentes, Lisboa, Coimbra, Genebra, Paris, Nova Iorque, Aveiro, e isso deu-me uma mundividência que me dá facilidade para adaptar-me aos ambientes. A outra marca do meu percurso é a independência.
É um tímido sociável?
Sou. Sou muito tímido e por isso é que gosto de falar para muitas pessoas. Gosto das conversas a dois ou a três, como esta em que estamos agora, e gosto da fala anónima. Não gosto do ambiente intermédio, que é aquele das 100 pessoas, em que mais ou menos nos conhecemos… Na verdade, eu tenho a noção exacta de onde vem a minha aprendizagem de falar em público. Vem do Brasil. Fui pela primeira vez convidado para ir ao Brasil em 1994, pelo Paulo Freire. Daí até agora, em cálculos redondos, por baixo, eu devo ter feito umas 500 ou 600 palestras no Brasil.
Talvez por isso alguém disse que gostava que se candidatasse à Presidência do Brasil.
Esse alguém, que eu acabei de saber agora, ao almoço, é o senhor Cristovam Buarque [senador, ex-ministro da Educação, consultor da Unesco e do PNU, quarto classificado nas eleições ganhas por Lula], que é uma imensa referência no Brasil. Já tive de falar em estádios de futebol… Na minha última palestra, que era uma coisa para professores universitários, toda bonitinha, chego lá e era um ginásio de basquete, com quatro mil miúdos de 17 anos. Isso deu-me um treino impressionante. Por isso, em relação à timidez, funciono mal no registo intermédio.
Já percebemos que os comícios não vão ser um problema. Mas também se diz que é muito frugal e não gosta de comprar roupa. Como se vai adaptar?
Terão de me perguntar daqui a uns meses. Nós nem sempre conseguimos ser completamente autênticos, mas há uma marca de procura de autenticidade na minha vida. Nada me indicava para ser reitor. Mas acho que exerci o cargo sem nunca renunciar à minha frugalidade, à minha sobriedade. Fui algumas vezes de bicicleta para a reitoria, e não era para fazer um número, nunca tive nenhum fotógrafo atrás a tirar fotografias. Fui porque sempre que posso não utilizar automóvel não utilizo.
Imagina-se a ir de bicicleta ou de transportes públicos pra Belém?
Imagino. Não me parece ser uma coisa impensável.
Há o protocolo e a segurança, e o Presidente da República não manda nelas, sabe disso?
Veremos… [Risos] Falamos daqui a dois anos. É evidente que há equilíbrios. E a minha maneira de ser, essa frugalidade, não pode nunca ser vista como falta de dignidade na representação da República. Mas, e isto são coisas que eu não digo muito, por essa frugalidade, sempre que fui representar a Universidade nunca recebi um tostão de ajudas de custo. Nunca quis. Acredito que as pessoas percebem essa autenticidade. As pessoas estão um bocadinho cansadas é dos discursos de plástico, do politicamente correcto, do não se pode dizer isto porque se pode perder cinco votos. Acho que esta eleição se vai ganhar na palavra confiança. Se as pessoas perceberem que lhes falo com autenticidade.
Diz que quer fazer uma campanha diferente. Como?
Quero fazer uma campanha de redes animadas pelas pessoas. Não quero ter uma campanha centralizada, com directivas. Quero que as pessoas se organizem. Muitas vezes vão acontecer coisas com as quais eu não esteja inteiramente de acordo, mas quero que isso venha de um movimento de baixo. Nos últimos dez dias, felizmente, já são muitos milhares.
Assim à partida parece um pouco anárquico. Uma campanha tem mensagens…
Há esse risco, é evidente, mas é diminuído quando temos uma estratégia, linhas de candidatura e agora de seguida a carta de princípios, até ao final de Maio. Quem quiser colaborar fá-lo neste enquadramento. Havendo esse risco, ele é infinitamente menor do que o de uma campanha centralizada, com directivas definidas. Preferirei sempre morrer ingénuo do que amargurado. Acredito na liberdade das pessoas. Recebi há duas horas um sms de pessoas que eu não conheço que se querem organizar, “não sei se há problema, mas nós sempre estivemos ligados ao CDS”. Não tem nenhum problema. Se aquelas pessoas se identificam comigo, e com as linhas da campanha, eu quero é que as pessoas se organizem.
Mas os portugueses não costumam ter muita iniciativa de organização. Sem estrutura vai conseguir ter um fio condutor?
O fio condutor vai ter de ser dado por mim. Uma candidatura presidencial é unipessoal. Não há 10 pessoas a falar. O único compromisso que conta é o meu. Isto dito, eu não tenho nada, nada, o preconceito sobre os portugueses que definiu. Eu sei que é isso que dizemos sobre nós próprios há 300 anos. Todos os intelectuais e toda a conversa sobre os portugueses aponta nesse sentido. Sei que é o País que vem nos livros, que somos desorganizados, pelo desenrascanço, mas não é o País que eu conheço. Se há coisa que os últimos quatro anos nos mostraram foi uma enorme capacidade de iniciativa dos portugueses e a capacidade de organizar soluções para muitos problemas sociais. Esta austeridade ainda não acabou com o País porque essas redes sociais, essa capacidade de iniciativa, apareceu em força nos últimos quatro anos.
Não vai ter comissão de honra, nem comissão política?
Comissão de Honra, no sentido tradicional, não. Mas é evidente que a partir de certa altura queremos divulgar os nomes de muitas pessoas que estão a dar apoio a esta candidatura. Esta é uma candidatura republicana. Não fazemos convites. Quem quiser vir, que venha. Até agora há um grupo de cerca de 12 pessoas, mais operacional, que se encontra quase diariamente. É gente na casa dos quarenta e poucos anos, totalmente voluntárias. Duas ou três vão deixar os empregos para se juntarem a isto a tempo inteiro. Para a semana abriremos a sede. Depois há um conjunto de pessoas com que me reúno, tomo pequeno-almoço, almoço, telefono, sempre de um modo informal. Não gostaria muito que ganhasse organicidade. Quando anunciei a minha candidatura no dia 29 desliguei-me da Universidade. Agora também não tenho salário. Achei que o devia fazer. Iria viver a campanha a achar que devia estar a dar uma aula…
Tirou uma licença?
Sem vencimento.
Quando vier a ter apoios partidários como é que vai ser? Vão integrar-se nessa forma de fazer campanha que defende?
Fico contente por utilizar o “quando”, eu teria tendência a utilizar o “se” [Risos]. Se vier a ter, as pessoas terão de funcionar no interior destas dinâmicas. É uma característica pessoal: a pior coisa que me podem fazer é tentar encostar-me à parede. Há muita arrogância no poder em Portugal. As pessoas a mim levam-me por bem, mas constrangendo-me é impossível. Eu vou fazer o possível dos impossíveis. Com uma entrega total. Mas quem vai fazer isto são os portugueses.
Já sabe quanto vai custar a campanha?
Temos um cálculo. Queremos fazer uma campanha com poucos custos. Não teremos um aparato centralizado que depois terá de colocar outdoors nas rotundas todas do País. Depois de termos analisado todas as campanhas anteriores, para fazermos uma campanha séria, que chegue às pessoas, precisamos de cerca de um milhão e meio de euros. É um bocadinho menos do que se gastou em campanhas anteriores. Se este processo correr bem, se tiver os níveis de votação que pensamos que venha a ter, a subvenção do Estado cobrirá esse valor. Teremos de recolher alguns donativos, eu terei de recorrer às poucas poupanças que tenho. Não é líquido que se possa pedir um empréstimo… Se correr mal, o risco é meu e estou cá para isso.
Diz-se um homem de esquerda. Nunca houve maiorias de coligação à esquerda. Acha que o sistema político está demasiado inclinado ao centro?
Acho que mais do que inclinado ao centro, criou-se uma convicção de que só se podia governar ao centro. É o famoso “arco da governação”, que eu acho uma coisa verdadeiramente insuportável, até porque é um conceito que logo à partida exclui 20% dos portugueses. A inevitabilidade do centro é a inevitabilidade de certas políticas. Sou completamente contrário a isso. As sociedades são de uma enorme pluralidade e essa pluralidade deve ser respeitada ao limite. Daqui decorre uma segunda questão central: a capacidade de fazer entendimentos. A partir do respeito pela diversidade, temos de ter a capacidade de fazer os entendimentos que resultem da vontade popular.
Sente-se capaz, como Presidente, de pôr os partidos a falar e a fazer entendimentos?
É a história da minha vida. Sempre o fiz na Universidade. Eu não faço consensos para vivermos a nossa vidinha o melhor possível, faço consensos em torno de projectos. Sinto-me muito capaz disso. É talvez de todas a coisas a que faço melhor. Essa amálgama do centro é uma coisa muito irritante em Portugal.
Daria posse a um Governo minoritário?
Claro. Não vejo nenhum drama nisso, desde que seja possível encontrar entendimentos e equilibrios que permitam encontrar estabilidade na governação. É muito importante haver estabilidade e que os portugueses sintam que o Presidente garante essa estabilidade. Mas estabilidade, para mim, não é ficar tudo na mesma.
Cavaco Silva já fez saber que não dará posse a um Governo minoritário. Se vencer as eleições à primeira volta, embora só tome posse a 9 de Março, vai estar a assistir ao processo de formação do Governo e às negociações do Orçamento de fora. Tem disponibilidade, depois de eleito, para ajudar o Presidente actual, caso ele lhe peça?
Em democracia, os mandatos cumprem-se até ao último dia. O Presidente tem um órgão próprio de aconselhamento, que é o Conselho de Estado. Contudo, se o Presidente entender que ouvir-me nesse contexto pode ser-lhe útil, estarei sempre disponível, como sempre estive. Mas a responsabilidade pertence ao actual Presidente.
Consegue ver-se a dar posse a um Governo do Bloco Central?
Consigo. Se me pergunta se esse é o meu ponto de partida, não é. Espero que seja claro para toda a gente que o meu ponto de partida é o da crítica das políticas de austeridade.
Ouviu Carvalho da Silva dizer que ainda não existem candidatos que ponham em causa a austeridade?
Não, não ouvi. A primeira parte do meu discurso de apresentação de candidatura é toda sobre isso, uma crítica das políticas de austeridade. Fi-lo de maneira intencional, poderia ter começado pelos poderes presidenciais. Quis deixar essa marca na minha declaração de candidatura. Isso para mim é muito claro. Quando se fala em Portugal de Bloco Central o que se fala é em tornar inevitáveis essas políticas de austeridade. Não sou favorável a isso. Mas o Presidente tem de tirar as conclusões da vontade das pessoas. Eu não posso substituir-me a essa vontade. Se num determinado momento resultar que essa é a única possibilidade, é evidente que terá de se encontrar uma solução.
Gostaríamos de saber o que faria em algumas situações concretas. A primeira é: assinaria o Acordo de Parceria Transatlântica para o Comércio (TTIP)?
Antes deixe-me esclarecer um ponto. Um candidato a Presidente tem de ir um bocadinho mais longe do que nas suas funções enquanto Presidente, O Presidente não tem funções legislativas, nem executivas, e tem de respeitar isso até ao limite, mas um candidato não pode responder a tudo dizendo que não tem nada para dizer… Vou responder a algumas questões por essa razão. Em relação ao Tratado Transatlântico tenho algumas reservas sobre a maneira como está a ser negociado. Creio que podemos estar de novo perante uma situação que já nos aconteceu antes com a União Europeia, que é aderirmos a um espaço comercial mais amplo para o qual a nossa economia pode não estar preparada. Estamos sempre a jogar um jogo, como nós percebemos hoje em relação ao Euro, que parece aberto, de iguais, mas onde uns têm umas armas e os outros têm armas diferentes. Depois tenho a sensação de que sempre que estão em jogo tratados em que intervêm os Estados e grandes grupos económicos, quase sempre são os interesses económicos privados que acabam por prevalecer. Ou porque têm melhores advogados, consultores ou influência. Quase nunca, ou nunca, estas coisas resultam a favor do público ou dos Estados.
Se houver um novo tratado europeu, pondera convocar um referendo?
Pondero, sim. O Presidente não pode convocar um referendo por iniciativa própria, pode criar condições para que isso aconteça. Se houver nos próximos anos uma revisão dos tratados, temos obrigação de fazer um debate muitíssimo maior e mais informado. O Presidente deve sinalizar perante os partidos que não ratificará um tratado se não houver um amplo debate na sociedade. E em casos de tratados que afectem de forma significativa a soberania nacional o Presidente pode dizer que entende que devem ser submetidos a referendo. O meu entendimento é que se o Presidente é chamado a ratificar é porque pode escolher entre ratificar ou não. Se não, não vale a pena… Alguém traz um carimbo e assina pelo Presidente. O que se verifica hoje é que a nossa adesão à Europa foi sendo feita de forma pouco informada.
Mário Soares promovia debates com as célebres presidências abertas. Vai fazer o mesmo?
Julgo que os portugueses precisam de um Presidente mais próximo, mais presente, que as ouça mais, que seja capaz de perceber os seus problemas. A minha ideia é ter presidências descentralizadas, onde eu posso estar um mês num lugar, outro mês no outro, mas é claro que é preciso ponderar com muito cuidado, porque se isto tem custos é melhor ninguém se meter a fazê-lo. A dimensão da coesão social - da pobreza, da luta contra as desigualdades, contra a austeridade que está a massacrar o povo português - e da coesão territorial - a desertificação, o despovoamento, aldeias inteiras que estão a desaparecer - são duas áreas centrais da minha acção presidencial.
Defende a renegociação da dívida “até ao limite do possível”. Como é que isso pode ser feito?
O limite nós não sabemos nunca. Quem está na ciência sabe que nunca fazemos o que é possível, porque isso já os outros fizeram. Nós vamos tentar descobrir uma coisa impossível, que nunca ninguém fez até agora.
Daí a pergunta: vendo o que se está a passar com a Grécia, não é impossível?
Vai ser obviamente um processo duro e difícil. Há compromissos que foram assumidos e nós, honradamente, temos de cumprir. Mas não precisamos de o fazer de forma passiva, ordeira, e como bons alunos. Podemos fazê-lo explicando em todos os lugares, dentro e fora de Portugal, fazendo alianças com outros países em situação idêntica, tentando criar as condições mais vantajosas, para que o problema - uma dívida insustentável - possa ganhar a possibilidade de ser renegociada. Sem isso resta-nos o caminho de sermos um país pobre, onde há cada vez menos capacidade competitiva, onde há cada vez menos jovens, que vai de ano para ano piorando nas suas condições sociais. Mas há muita coisa que vai acontecer nos próximos meses ou anos e nós não conseguimos sequer imaginar agora.
Para já, os credores estão a fechar a porta a Varoufakis e a Tsipras…
Acho que o jogo ainda não chegou ao fim… Está a tirar conclusões do processo grego que eu ainda não sou capaz de tirar. Vamos ter de seguir o que se segue na Grécia. Sabemos uma coisa: as duas últimas grandes eleições na Europa, na Grécia e no Reino Unido, deram uma vitória considerável a correntes que, sendo completamente diferentes, têm ambas um grande cepticismo em relação a esta Europa. É um pouco triste o que vou dizer agora e até me custa, eu que sou um europeísta de sempre: a União Europeia conseguiu esta coisa extraordinária que é transformar-nos a todos em eurocépticos. De facto, o que está a acontecer não pode deixar de nos trazer uma enorme descrença em relação à União Europeia. Alguma coisa vai ter de mudar, e seriamente. Este problema não é meramente financeiro, é político. Estamos a falar de política, na Europa.
Mas a esquerda não conseguiu, até agora, nenhuma alternativa à austeridade…
A palavra-chave da sua pergunta é “até agora”. Por isso é que estamos aqui e agora, para poder construir um projecto de mudança em Portugal e darmos um contributo para a mudança na Europa.
Sente que é essa a sua responsabilidade?
Completamente. Dou-me a este projecto, com todos os riscos no plano pessoal, com uma enorme crença de que posso contribuir para uma mudança de fundo da política em Portugal, Se nós acreditássemos que esta Europa não vai mudar, e que as políticas de austeridade são uma inevitabilidade ficávamos em casa a protestar contra qualquer coisa…
Numa entrevista recente disse que na crise de 2013, com as demissões de Portas e Gaspar, devia ter havido uma renovação da legitimidade democrática. Com eleições?
Sim.
Em que se baseava?
No princípio constitucional do regular funcionamento das instituições democráticas. Havia uma quebra forte de confiança no programa político, com a demissão do ministro que tinha sido o seu protagonista, como a demissão do principal parceiro da coligação. Havia também uma quebra de confiança grande entre o que tinham sido as políticas do Governo e a percepção dos portugueses sobre o que lhes havia sido prometido na campanha eleitoral. Na minha opinião, em alturas dessas, o Presidente deve dar a voz aos portugueses. Uma parte do que se passa em Portugal hoje- o desânimo, a crispação, a animosidade que se sente na sociedade - tem a ver com a situação económica, obviamente, mas tem a ver também com a quebra de confiança no sistema político e com o facto de, na altura própria, os portugueses não terem sido chamados a renovar a legitimidade democrática do Governo.
Acha que este Governo tem menos legitimidade?
O Governo tem uma legitimidade do ponto de vista da votação que é inequívoca. Tem maioria no Parlamento, o Presidente tomou a decisão que tomou, mas há uma legitimidade que vai para além disso, que tem a ver com a confiança dos portugueses.
O Presidente é o comandante supremo das Forças Armadas, sector onde é muito visível o desencanto com o rumo da democracia. O facto de não ter um passado partidário pode favorecer a simpatia desse sector?
Não tenho nunca, em nenhuma circunstância, um discurso anti-partidos. 48 anos chegaram, não precisamos de mais. Sou crítico em relação a certas modalidades dos aparelhos partidários e do seu funcionamento. A Constituição é, agora, como se compreende, o meu livro de cabeceira [risos]. Depois de a ler muitas vezes, cada vez me vou apercebendo melhor que não é por acaso que lá está previsto que os Governos vêm de projectos partidários e os Presidentes de projectos individuais. Porque, de algum modo, essa candidatura pessoal dá uma independência (que eu não digo que quem venha de um partido não tenha) na qual os sectores militares certamente se revêm com alguma simpatia.
Nunca militou num partido, mas teve uma passagem por um partido revolucionário, a LUAR. Pode contar-nos como foi essa experiência?
Nunca me filiei. Participei durante alguns meses nalgumas sessões. Sempre fui muito desalinhado. Nessa mesma altura, no ano de 1974, colaborei com associações de moradores, comissões de trabalhadores e promovi uma das primeiras candidaturas independentes às autárquicas. Chamava-se, se não estou enganado, TMUPA, Trabalhadores Moradores Unidos para as Autarquias, para a assembleia de freguesia da Parede [em 1976].
O que o levou a fazê-lo?
Houve um período pequeno, mas muito importante na minha vida, em que tinha uma ligação muito forte ao Zeca Afonso. Foi o Zeca que me levou a algumas dessas sessões. Hoje olho para aqueles momentos como os mais importantes da minha vida. Parece que vivíamos a sensação contrária da que vivemos hoje. Naquela altura tínhamos a sensação de que tudo era possível e que bastava decidirmos à volta desta mesa que uma coisa ia acontecer para que ela acontecesse. Hoje é ao contrário. Façamos o que fizermos, digamos o que dissermos, parece que não muda nada. Recuando, consigo hoje perceber que muita gente se tenha sentido agredida naquela altura. Mas uma coisa que sempre foi muito importante para mim, apesar de ter enormes convicções, é nunca ter sido capaz do menor gesto de violência.
Mas rejeita qualquer tipo de violência, por convicção ética?
Rejeito qualquer tipo de violência. Não sou capaz. Tenho um compromisso, que levarei até ao fim, com a minha mãe que, pouco antes de morrer me pediu não para não dizer mal de ninguém.
E está preparado para o contrário, para que digam mal de si?
Estou completamente preparado para isso. Percebi nas últimas semanas que há uma espécie de lógica de intimidação. Como se dissessem “esta pessoa não tem o direito de jogar este jogo que não lhe pertence”. Não li a maioria das coisas que escreveram, decidi não ler. É impossível initimidarem-me. Esses ataques descabelados reforçam-me. O Padre António Vieira - não posso fazer muitas citações, senão acusam-me de fazer muitas citações - dizia qualquer coisa assim, se não erro. Ainda que ter inimigos pareça uma desgraça, uma desgraça muito maior é não os ter. [Risos]
Tem denunciado a promiscuidade entre negócios e política. Que papel pode o Presidente desempenhar nesse caso?
Um papel imenso. Pela palavra, pelo exemplo e por não aceitar a degradação da vida pública por fenómenos de corrupção. Esses fenómenos têm sido gravíssimos na sociedade portuguesa e por isso precisamos de um Presidente que pela sua história de vida e pelo seu exemplo não seja conivente. A palavra transparência é fundamental. Em todos os casos, sejam PPP, sejam privatizações, a transparência é central. O Presidente pode exigir transparência. Mas pode também, ainda que não de uma forma pública, chamar a atenção de governantes. Eu fiz isso, sistematicamente, como Reitor. Não basta sermos sérios, temos de parecer sérios.
Como se define em matéria de costumes?
Liberdade. A minha matriz sobre os costumes é a liberdade.