U-1277: Memórias e histórias de um submarino

Os 70 anos do fim da segunda guerra mundial na Europa são assinalados na Praia de Angeiras, em Matosinhos, local onde a tripulação de um submarino alemão capitulou em 1945. Local vai ser o primeiro da costa portuguesa a ser documentado no projecto Baseline, uma iniciativa ambientalista de exploração, educação e protecção do património subaquático mundial

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Fernando Veludo/nFACTOS
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Rui Spranger fez um intervalo nas representações da peça “O Tesouro”, de Manuel António Pena, em cena no Teatro Pé de Vento, e está ali, momentaneamente vergado, e pensativo, para encarnar a personagem de um dos marinheiros da tripulação do U-1277, o submarino alemão cujo comandante recusou render-se aos russos, e levou os seus 46 marinheiros, Atlântico abaixo, durante um mês “de fome, de frio e de silêncio”, até chegarem ali, ao mar ao largo de Angeiras.

“Os soviéticos tomaram conta de Kiel. Entregarmo-nos aos russos era morte na certa. Argentina era muito longe. Vigo era a nossa melhor hipótese”, vai dizendo a personagem-marinheiro, avançando as razões que justificam que um submarino alemão do modelo U-Boat, uma das mais terríveis máquinas do poderoso exército alemão, esteja afundado “num sítio chamado Cabo do Mundo, ao norte do Porto” há precisamente 70 anos. 

Esta era apenas a quarta vez que o actor ensaiava o texto de Renzo Sicco, o fundador do Assemblea Teatro de Milão, e o autor do espectáculo que vai estrear no próximo dia 3 de Junho, ali mesmo, na praia de Angeiras, 70 anos depois do exacto momento em que o comandante Stever se entregou ao chefe do posto de guarda fiscal de Angeiras, Rudolfo Mesquita. “Os cinco últimos homens que abandonaram - e  afundaram o UBoat - estavam agora ali, a chegar a uma costa que desconheciam, sem saberem quem os ia recolher”, continuava Rui Spranger. 

Foi o chefe do posto da Guarda Fiscal de Angeira, Rudolfo Mesquita, quem aceitou a rendição do comandante alemão. “Ouvi esta história muitas vezes contada pelo meu pai. E conheço a história dos vizinhos que os acolheram e que lhes deram batatas e uma faneca”, diz, 70 anos depois, o neto e afilhado do guarda fiscal, também ele Rudolfo Mesquita e actualmente presidente da Junta de Freguesia de Lavra, agradavelmente surpreendido com a encenação a que acabava de assistir. 

“Sou um fiel militante do Teatro com Memória. Porque acredito que se formos buscar o passado e o trouxermos para o presente, podemos estar a preparar o futuro”, explica ao PÚBLICO Renzo Sicco, o autor e encenador. E há “muitas, tremendas, imensas” lições a tirar da história do U-1277, história essa que Sicco descobriu por acaso, quando se caminhava nos passadiços da praia de Lavra. “Esta é uma história extraordinária. Porque falamos sempre da perspectiva dos vencedores e esquecemos os vencidos e porque no mar, ganha a solidariedade, ao contrário da guerra, em que tudo são números - consultei os arquivos britânicos com a transcrição das comunicações entre os submarinos de guerra alemães, e é mesmo assim; chega um ponto que não são de pessoas que estão a falar, mas sim de números, de mortos, quantos mais melhor. No mar, pelo contrário, há o lema ‘salvamos primeiro, julgamos depois’. Foi o que aconteceu aqui, numa pequena praia perdida no Cabo do Mundo”, argumenta. Renzo não esconde que o facto de ser italiano, um país que se debate diariamente com os dramas no mar e os naufrágios de emigrantes que tentam chegar à Europa, o faz sentir que esta é uma das questões que importa reflectir, pensar, resolver no futuro. Agora, no presente, está apenas empenhado em devolver à comunidade piscatória de Angeiras a história do U1227. “Esta história é deles”, remata. 

Joaquim Pereira é outro desses pescadores, que ouviu falar da história do submarino desde pequenino. Nunca o viu, mas sabe onde está. “Digo muitas vezes à minha mulher: ‘Vou ao submarino’. Porque aquela zona ali é um viveiro de fanecas. É onde as vamos apanhar sempre”, relata. E imagina a profundidade pelas 18 braças que já usou de cordas para chegar ao fundo: “Ora, uma braça é pouco mais do que um metro. É fazer as contas. Deve estar afundado para aí a 30 metros”, vai dizendo o pescador, que actualmente é também o presidente da Associação de Armadores de Pesca de Angeiras. Pereira nunca viu o submarino. Também Pereira ficou muito agradado com a peça de teatro que os italianos da Assemblea Teatro e os portuenses do Teatro Pé de Vento lhes vieram trazer à porta. 

“Este texto é uma reflexão sobre o que pode sentir e pensar quem participou numa máquina de guerra deste tipo, e da devastação que tal provoca às suas famílias. E da surpresa que é serem recebidos - com solidariedade - pelos pobres pescadores, que não eram ricos, mas partilharam roupa e comida”, explica Renzo Sicco. Os 47 tripulantes que fugiram do ajuste de contas com o exército russo não terão outra alternativa senão enfrentar na praia o julgamento dos seus próprios fantasmas. 

É isso que um dos tripulantes do UBoat, personagem de Rui Spranger, e aquela que Renzo imaginou como sendo filha do comandante (e que será encarnada pela actriz italiana Laura Casano), estarão a fazer em palco, ou melhor, nas areias da praia, nos dias 3 e 4 de Junho. Será na Praia de Angeiras, junto ao anfiteatro natural criado junto dos antigos tanques romanos da praia que a peça “U-Boat 1277” vai  ser apresentada. Entretanto, e até lá, os ensaios vão prosseguir em Turim, Itália, onde o encenador estará a fazer os ajustes finais à peça, em termos de imagens e de som (haverá um músico a tocar acordeão em palco na estreia) 

De símbolo de devastação a fonte de riqueza 

 

De símbolo de devastação, e do terror que foram os dias da guerra, o submarino alemão acabou por se ir transformando numa fonte de riqueza para a região. Não só por causa do viveiro de fanecas que referiu o presidente dos Pescadores de Angeiras mas por servir de recife artificial para muitas espécies marinhas. E por se ter tornado local de romaria para exploradores subaquáticos de todo o mundo, particularmente aqueles que encontram nos despojos de guerra o seu principal motivo de interesse. 

Hoje mesmo, um grupo com cerca de duas dezenas de mergulhadores vai sair de Leixões para o alto mar com a intenção de fazer uma visita ao submarino alemão. Será o primeiro local a ser documentado pelo projecto Baseline Matosinhos, um projecto que se propõe recolher dados subaquáticos e a fazer o respectivo registo, numa base de dados global (o projecto Baseline surgiu na Florida, Estados Unidos da América) que visa ser uma ferramenta importante para a monitorização da sustentabilidade dos ecossistemas marinhos.

Domingos Cruz, mergulhador há 15 anos, e impulsionador do Baseline em Portugal, conhece bem a região. “Já perdi a conta às vezes que lá mergulhei”, diz ao PÚBLICO. As suas preocupações são outras: “Também perdi a conta ao número de vezes que estive debaixo de água durante mais de 20 minutos sem encontrar um único peixe. Temos de fazer alguma coisa”, exorta.

O projecto Baseline em Portugal será dinamizado pela AtlanticThunder, uma associação sem fins lucrativos, de mergulhadores e ambientalistas e que se compromete “a mudar o paradigma, trazendo para o mergulho recreativo um objectivo definido de protecção dos recursos subaquáticos”, como se lê na apresentação do projecto. Domingos Cruz explica: “A sustentabilidade não é preocupação exclusiva dos biólogos marinhos. Um mergulhador recreativo faz facilmente uma média de 100 mergulhos por ano. Se estiver focado num objectivo, e se fizer o registo de todos os dados do seu mergulho - temperatura, visibilidade, qualidade da água, contagem de espécies, recolha de lixo e de redes fantasma - esses dados, armazenados numa rede global irão com certeza servir a alguém”. 

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