Os do culto e os do mundo
Serviço educativo da Casa da Música estreia espectáculo com duas comunidades de etnia cigana nesta quarta-feira, Dia Mundial da Dança.
“As ciganas gostam muito de dançar”, diz a menina, que mais parece uma mulher em ponto pequeno, com a sua saia e o seu casaco de renda preta, os seus lábios pintados de vermelho. “Algumas são do culto, outras são do mundo. Eu sou do mundo. Não sou baptizada”. É um detalhe importante. Os baptizados pela Igreja Filadélfia Evangélica só podem cantar e dançar para Deus.
– Já disse à minha mãe que não quero ser baptizada, porque quero continuar a dançar – anuncia, de olhos postos na mãe.
– Danças para Deus, que é a mesma coisa – retorque a mãe, Suzete Fonseca.
– Não, não é! Se me baptizo, nem nos casamentos posso dançar.
Jorge Prendas, coordenador do serviço educativo da Casa da Música, desconhecia este constrangimento religioso quando começou a pensar neste projecto. E ficou surpreendido ao perceber o quanto as velhas tradições podem estar a ser tomadas por formas de culto mais ou menos recentes.
“Quando saltamos para um projecto destes, seja com pessoas com deficiência, sem-abrigo, ciganas ou reclusas, nunca sabemos o que vamos encontrar”, comenta o compositor. “É olhar para o que se tem e pensar: 'o que posso tirar daqui?' Neste caso, foi olhar para pessoas que nem sequer se querem tocar em palco, os do culto e os do mundo, e pensar num espectáculo que os pudesse integrar.”
Isabel Barros (direcção artística) e Jorge Queijo (direcção musical) aceitaram o repto. Houve uma reunião com um pastor da Igreja Filadélfia Evangélica para discutir os limites. Negociaram-se detalhes que não se intrometem na criação artística. Um exemplo: as adolescentes já baptizadas dançam apenas canções “de Deus”, retirando-se perante canções “do mundo”.
Prepare-se para uma espécie de festa. O que a coreografa tentou, ao longo dos últimos cinco meses, foi “conseguir que a essência da cultura cigana esteja no espectáculo de uma forma especial e com uma vertente mais contemporânea”. E foi percebendo que “muita coisa já se perdeu em termos de canto e de dança”, apesar do isolamento em que vivem as comunidades de etnia cigana em Portugal.
Jorge Prendas queria há muito trabalhar com comunidades de etnia cigana. “Queria valorizar o que é genuíno nesta cultura secular e dar a uma comunidade uma oportunidade de mostrar à comunidade em geral, muitas vezes preconceituosa, que o cigano tem uma raiz cultural bastante forte e identitária que merece ser partilhada com o público que vai à Casa da Música.”
Tudo convergiu quando o director artístico de educação, António Jorge Pacheco, lhe anunciou que 2015 seria o ano da Alemanha na Casa da Música e que a 9.ª edição do Festival Música & Revolução teria sons proibidos pelo III Reich. Os nazis não queriam ouvir cantar ou tocar as comunidades de etnia cigana; para essas, como para a as judias, determinaram prisão, trabalho forçado, extermínio.
Não era coisa que a Casa da Música pudesse fazer do pé para a mão. Precisava de parceiros, de equipas que conhecessem o terreno, que tivessem laços com uma ou mais comunidades, que lhe servissem de ponte. A Câmara Municipal de Matosinhos e a ADEIMA – Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos trabalham há anos com os moradores dos bairros do Seixo e da Biquinha.
Começaram por ser 109 membros das duas comunidades. Nunca tinham entrado na Casa da Música, um ícone da cidade do Porto. Vitória ficou de boca aberta quando entrou na Sala Suggia. A talha dourada ou os órgãos de tubos sobressaem na sala principal do edifício desenhado por Rem Koolhaas. “Oh, é tão romântica! Tiveram de gastar muito dinheiro para fazer!”
Os ensaios do espectáculo, intitulado Romani, começaram em Dezembro do ano passado. Ainda se experimentou a manhã de domingo, mas quase ninguém apareceu. Suzete Fonseca, a mãe de Vitória, e as outras mulheres tinham de preparar o almoço antes de sair de casa. Ficaram os ensaios para as tardes de domingo.
Isabel Barros e Jorge Queijo nunca sabiam com quem contar. Podiam chegar à sala de ensaios e encontrar toda a gente, metade, menos, muito menos. Numa ocasião, morreu um familiar em Felgueiras, ninguém da Biquinha apareceu. Noutra, um familiar foi hospitalizado. No fim, resistiam 46 pessoas de etnia cigana. “Já imaginava que pudesse acontecer, também faz parte”, diz a coreógrafa.
Vitória não falhava nem os outros com rotinas associadas ao “culto” no Seixo. Vão ao culto quase todos os dias. Limpam a igreja, situada no limite do bairro, de modo rotativo. Juntam-se ali ao final da tarde. Uns tocam, outros cantam, todos oram, alto, muito alto, como se isso os aproximasse mais de Deus.
O pai de Vitória lidera o grupo. “Sou uma ovelha igual às outras, simplesmente lidero a parte do coro”, diz Sérgio González, que também toca teclas. É ele quem, por exemplo, vai buscar Elton Prudêncio, o guitarrista. “Ele não é da nossa igreja, mas é da nossa doutrina. Somos da Igreja Filadélfia do Seixo. Ele é da Igreja Filadélfia de Ermesinde. Chamei-o para tocar connosco”.
“A igreja traz responsabilidades”, interpreta Jorge Prendas. “O compromisso deles não é comigo, não é com a Casa da Música, é com uma entidade suprema, com uma entidade que reconhecem como divina.”
“Trabalhar com comunidades, ciganas ou não, não é igual a trabalhar com profissionais”, lembra Isabel Barros. “Há um compromisso descomprometido. E isso é um desafio. Temos de ter plano A e B. A mim não me causa confusão. Se alguém não entra, consegue-se introduzir outra pessoa.”
Não estão sozinhos. Também entram alunos do Balleteatro. Jorge Prendas acha que a mistura só traz vantagens. “Para mim, o grande princípio é que a distinção não se note quando as pessoas forem ver o espectáculo”, diz. Estão todos no mesmo palco, apesar de se perceber quem é quem: os 46 moradores do Seixo e da Biquinha, os 11 técnicos que com eles trabalham, os 23 alunos do 12.º ano do Balleteatro e quatro músicos profissionais que amiúde colaboram com a Casa da Música.
Nesta quarta-feira à noite, na Casa da Música, haverá uma estrutura negra e, dentro dela, aquelas pessoas todas, dispostas em círculo, com lâmpadas enormes, redondas, a cair do tecto. “As luzes vão apontar para nós e muita gente vai estar a ver”, espera Vitória. “Vão estar para aí mil pessoas!”
Será a primeira vez que a cultura cigana portuguesa subirá àquele palco. Talvez no final alguém vá perguntar a Jorge Prendas, como noutras ocasiões, “porque se gasta tanto dinheiro com pessoas assim”. Há muito quem lhe diga que investir em grupos sociais vulneráveis não vale a pena. A esses, o compositor costuma explicar que “a música é uma ferramenta de intervenção social extremamente eficaz”, que “a música pode ser um caminho para a integração.”
Sérgio González está orgulhoso: “Queremos dar a conhecer ao mundo que também há ciganos educados, que servem a Deus.” Suzete Fonseca, a mulher, está expectante. “Gostava que fosse uma porta para outros trabalhos. O cigano é uma porta fechada. Faz feiras e acabou. O cigano não é só da feira!”
Ela já não trabalha na feira, nem o marido, como os pais de ambos sempre trabalharam. Gostavam ambos de trabalhar numa cozinha, só que nenhum tem formação específica. Ele tem o 8.º ano e ela só teria o 2.º, não fosse a equipa do Rendimento Social de Inserção forçá-la a fazer o 5º.
“Uso calças, mini-saia, fato de banho, mas há coisas que não quero mudar”, diz Suzete. A começar pela valorização da virgindade das raparigas até ao casamento. “A minha filha ainda é pequenina. Já peço a Deus que ponha juízo na cabeça dela. Quero que ela se guarde para um dia me dar a alegria que eu dei à minha mãe, a alegria de ter uma filha honrada, que não anda na boca do povo.”
Vitória quer “ser igual” à mãe, que se casou virgem aos 17 anos, quase 18. Mas não quer deixar a escola no 2.º ano, como ela, quer terminar o secundário, ingressar na Polícia Marítima e continuar a dançar. “Foi a minha mãe que me ensinou a dançar. Quando eu tinha cinco meses já dançava”, afiança. E a mãe confirma: “A dança está nela. Tenho vídeos dela, com cinco meses, no meu colo. A gente dizia para ela dançar e ela abanava-se e mexia as mãos como uma mulher.”