A Europa não se importa, desde que morram fora das suas águas

A União Europeia já decidiu: são cinco mil lugares para 36 mil pessoas. Existirão provas para seleccionar os sortudos que ficam? Cultura geral, prova de esforço, matemática? Ou serão uma espécie de "Hunger Games" transmitidos em horário nobre nos países da UE?

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Em Malta, tinha lugar o funeral de 24 das 900 pessoas que morreram domingo no pior desastre do Mediterrâneo. Os corpos foram chorados pelos sobreviventes. Em Bruxelas, à mesma hora, os principais líderes da UE tinham nas suas mãos a vida dos cerca de 5000 migrantes esperados por semana durante os próximos cinco meses pelo ministro do Interior de Itália. Identificar os traficantes, reunir informação sobre as redes em que operam e destruir os barcos. Aumentar os fundos e os barcos de patrulha. Registar aqueles que já chegaram. E chegamos à fase que mais controvérsia provoca em Bruxelas: distribuir quem chega pelos países da UE.

Impedi-los de partir ou ajudá-los a vir? No (nosso) mar não podem continuar a morrer pessoas como ratos, presas nas caves dos navios. No B.I. a minha avó Guiomar não tem naturalidade, nasceu a bordo de um navio após a invasão da ilha de Timor pelos japoneses na 2.ª Guerra Mundial. Em Agosto de 1975 a minha família é outra vez salva pelos barcos. A minha mãe conta: "No cais de Dili, em Agosto de 1975, eu e as minhas irmãs, a minha mãe e as minhas tias escondíamo-nos das bombas e dos tiros. Acordávamos com medo, com fome e com frio. Aos cinco anos pressentia a presença do meu pai e procurava-o assustada. Conseguimos ser resgatadas por um navio holandês e partimos para Perth-Austrália. O meu pai conseguiu fugir de Timor, nadando até uma barcaça que o levaria finalmente ao barco”. 

O barco que carregou Hakim Bello, sobrevivente da tragédia de Lampedusa, era um dos muitos atracados numa praia perto de Tripoli. O The Guardian descreve Hakim como um "barco velho de pesca, provavelmente demasiado velho para ser ainda usado". O medo que o motor não aguentasse a viagem até Itália, ou o facto daquela ser a primeira vez do capitão do barco, tornaram-se males pequenos ao lado de ondas imponentes e ininterruptas, que teimavam em sacudir o barco. Um helicóptero avistou-os, foram resgatados por um navio italiano e levados para Lampedusa. “Fomos trancados num centro de recepção que mais parecia uma prisão”, conta Hakim. Agora vive em Berlim.

Pedro Passos Coelho disse que Portugal ajuda com meios técnicos mas, cauteloso, aponta que os meios existentes são suficientes por enquanto. David Cameron, assim que chegou a Bruxelas, disse estar disposto a oferecer três helicópteros e três navios de patrulha. Apressou-se logo a esclarecer, não fossem os migrantes ficar com esperança, que aqueles que fossem resgatados deveriam ser levados para o país seguro mais próximo, negando o asilo em Inglaterra. Seguiram-lhe o exemplo a Alemanha, a Bélgica e a Irlanda. O primeiro-ministro de Itália acrescenta que está contente porque, desta vez, a “Europa toma uma decisão estratégica e não emocional”. A arrogância com que a Europa defende as suas fronteiras petrifica-me. Horroriza-me o cinismo e o desprezo com que os principais líderes tratam as mortes que não lhes são próximas.

Refugiados, os que fogem da sua terra. Retornados, os que regressam. Os barcos agora para sempre ligados às fugas. O desespero pela sobrevivência que os aproxima da morte. As fugas. As vidas de milhares de seres humanos decididas algures numa sala em Bruxelas, por uma dúzia de governantes. Nasceram no continente errado, estão condenados. Presos – de um lado os traficantes que os extorquem com a promessa de uma vida mais segura, do outro a Europa que promete encontrá-los no Mediterrâneo e conduzi-los ao seu país de origem, à morte certa. A Europa não se importa, desde que morram fora das suas águas.

Deve a UE estar preocupada em salvar estas vidas ou em correr atrás das redes de traficantes? Quantas pessoas mais tem o mar de levar para que as barreiras geográficas da UE sejam repensadas?

Em 2014, afogaram-se 3,279 imigrantes. Este ano já morreram 1700. Os que se aventuram no Mediterrâneo vão continuar a querer deixar o horror para trás. Fogem de uma vida mortificada. Ainda que os espere a morte no mar, tudo será melhor que a vida na terra.

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