O “novo Marx” consegue pôr uma plateia a rir mesmo a falar de desigualdades
Menos tributação sobre o trabalho, mais tributação sobre a riqueza. Foi esta a síntese de Piketty na Gulbenkian, em Lisboa: um resumo em hora e meia das mais de 900 páginas de O Capital no século XXI.
Enquanto gesticula com os braços e aponta para o ecrã onde vai desfiando sucessivos gráficos com as grandes tendências da distribuição da riqueza ao longo de mais de um século (nos EUA, na Europa, no Japão…), Piketty parece querer testar a plateia com as suas tiradas de ironia, ao falar sobre a crise na zona euro, a distribuição de rendimentos, o nível da carga fiscal em Portugal… Não estamos na Paris School of Economics, onde economista francês dá aulas, mas no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que esta segunda-feira encheu para o ouvir sustentar a ideia de que a tributação sobre a riqueza ajuda a corrigir as desigualdades na distribuição dos rendimentos.
Foi como uma aula, uma hora e meia para sintetizar as mais de 900 páginas de O capital no século XXI (editado em Portugal pela Temas e Debates). E Piketty fez jus à fama de rockstar economist que foi ganhando à medida que o debate e a controvérsia cresciam com as reedições do seu livro à escala global. Quarenta minutos antes da conferência, já o auditório estava praticamente lotado, obrigando centenas de presentes a acompanhá-lo à distância, num outro auditório da fundação onde a conferência passava em directo.
A ouvi-lo nas primeiras filas teve alguns políticos e ex-figuras de Estado. Se durante a manhã e a tarde se dividiu em encontros com o secretário-geral do PS, António Costa, o dirigente do Livre/Tempo de Avançar, Rui Tavares, e o ex-reitor António Sampaio da Nóvoa, na Gulbenkian não faltaram o ex-Presidente da República Jorge Sampaio, o ex-Presidente da Assembleia da República João Mota Amaral, o ex-ministro socialista das Obras Públicas António Mendonça, o ex-presidente da Gulbenkian Rui Vilar ou o ex-líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa.
Piketty falou em inglês. A primeira gargalhada da plateia aconteceu logo a abrir, quando advertiu os presentes para o seu acentuado sotaque francês, que o ajuda a sincopar as frases. Piketty começou por se referir à crise na zona euro e ao nível de dívida pública elevado dos países em crise para refutar a ideia de que só há uma solução política para responder a um problema que, diz, deve ser encarado como sendo “comum” aos 19 países da moeda única. “Há sempre alternativas” e “olhar para o passado [da evolução das desigualdades] abre um debate para várias soluções” sobre como responder à crise. E as soluções, vincou, têm de ser europeias.
A nova teoria para a evolução da desigualdade, que Piketty arrisca, está plasmada na obra que lhe valeu a alcunha de “novo Marx”. Piketty esteve em Lisboa para reciclar esses conceitos, ora apontando os exemplos históricos da sociedade norte-americana, ora fazendo o contraponto com a situação europeia e o caso português. “O aumento da desigualdade nos EUA nas últimas décadas deve-se principalmente ao aumento da desigualdade nos rendimentos do trabalho”, referiu.
Não foram raras as vezes em que Piketty, ironizando sobre a forma como os governos lidam com o combate às desigualdades, levou a plateia a rir durante alguns segundos. E aconteceu quando se referiu a países que têm taxas de 0% sobre as fortunas… No livro, Piketty analisou dados de duas dezenas de países, incluindo Portugal, um dos países onde nas últimas três décadas houve um maior aumento do peso do rendimento dos mais ricos. Se em 1982 os 1% mais ricos concentravam 4,3% do rendimento, em 2005, obtinham 9,85% do total.
Como muitas obras que parecem ter vindo para ficar, a de Piketty tem sido fonte de acesos debates, um multiplicador de reacções mais ou menos epidérmicas. A “aula” na Gulbenkian também não foi um monólogo.
Da plateia, o economista Rui Nuno Baleiras, membro do Conselho das Finanças Públicas, questionou se devem as pequenas economias usar a tributação para enfrentar os problemas sociais. Piketty considerou que, mesmo aí, os países “podem ter taxas mais progressivas sobre a propriedade”. E defendeu que “há reformas do sistema fiscal a fazer em Portugal e em toda a Europa”. Numa frase: “Menos tributação sobre o trabalho, mais tributação sobre a propriedade acumulada”.