Venda de casas penhoradas deixa de ser automática e fica nas mãos dos chefes de Finanças
Governo põe travão à venda automática para quem só tem uma habitação. STI diz que falta pessoal para avaliar caso a caso.
A autoridade tributária reagiu a destempo. Só a sucessão de penhoras inusitadas nos últimos meses fez disparar o alarme no Terreiro do Paço. A marcação automática de vendas de imóveis, associada à falta de controlo humano caso a caso e à pressão para aumentar a receita fiscal, provocou algumas situações pouco habituais, que o Ministério das Finanças tenta agora corrigir. Em vez de haver um mecanismo informático que activa automaticamente a venda de imóveis sob ordem de penhora, caberá agora aos serviços de finanças avaliar primeiro se o processo avança ou não.
Com as novas orientações, fica nas mãos dos directores e chefes de Finanças a decisão final de vender os imóveis. As novas directrizes só chegaram ao conhecimento formal dos serviços na última quinta-feira, dias depois de o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, anunciar ao Expresso estarem “em curso mudanças nos procedimentos e automatismos em matéria de penhora e/ou venda de bens”.
Num email enviado ao directores e chefes de Finanças, a que o PÚBLICO teve acesso, o director dos serviços de gestão dos créditos tributários da AT, Jorge Martins da Silva, anuncia que “será descontinuado” no Sistema de Gestão de Vendas Coercivas, conhecido internamente como SIGVEC, “o mecanismo de pré-activação das vendas” se o imóvel penhorado for a única habitação do contribuinte.
Após a penhora, surge no sistema informático a indicação “Venda a aguardar activação”. Segundo as orientações da AT, só através deste travão é que a marcação efectiva da venda fica “dependente de impulso manual do chefe de Finanças, que em cumprimento do dever de imparcialidade e em respeito pelo princípio da proporcionalidade e adequação de meios decidirá” se a venda se concretiza, “sempre e quando se mostrem reunidos os pressupostos legais”.
Antes de se decidir a marcação da venda dos bens penhorados, o contribuinte passa a ser chamado para uma reunião presencial, onde é informado da “iminência da marcação da venda do imóvel penhorado” e dos “mecanismos legais ao seu dispor para a regularização da dívida”. Se o contribuinte não comparecer na reunião e não pedir para ser ouvido noutra data, um funcionário do fisco deve ir ao local do imóvel para verificar, “na medida do possível”, se aquela é a “habitação própria e permanente” do contribuinte visado. Em todo este processo, a AT recomenda aos chefes de Finanças “uma adequada ponderação” e pede para “assegurarem pessoalmente a observância destas orientações”.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), Paula Ralha, que anteriormente chamara a atenção para os casos de penhoras “excessivas”, diz que as novas orientações permitem calibrar com mão humana o “automatismo da máquina” introduzido nos últimos anos, mas não resolvem o problema. Paulo Ralha levanta dois problemas. “Se o processo prescreve, quem tem a responsabilidade é o funcionário? Não sabemos”, alerta. Questionado pelo PÚBLICO sobre a forma como fica salvaguardada a não prescrição, o Ministério das Finanças não esclareceu a questão, dizendo apenas que a penhora de imóveis afectos à habitação própria e permanente é muito residual e que “existem mecanismos legais para evitar a prescrição de dívidas fiscais”.
A outra dúvida que o presidente do STI diz não ver respondida pela AT é em relação à organização dos recursos humanos. Ralha prevê dificuldades em pôr em prática as novas orientações, por falta de pessoal. Para reforçar o controlo sobre as vendas de imóveis, diz, será sempre preciso direccionar recursos humanos para essa tarefa. “Se condicionarmos os recursos humanos ao atendimento [nos serviços ao público], não temos pessoas para fazer a triagem. Se as colocarmos em backoffice, ficam os serviços destapados”, alega. O PÚBLICO questionou o Ministério das Finanças se está a ser feito algum ajustamento ao nível dos recursos humanos, mas a resposta foi outra, lembrando que estão previstas “reuniões presenciais” dos funcionários com os contribuintes. Nada é dito que aponte para um reforço de meios.
Com esta medida, as Finanças reconhecem implicitamente falhas na automatização dos procedimentos, quando ainda em Janeiro traçavam um objectivo claro no plano de combate à fraude e evasão fiscal: “Serão reforçados os mecanismos de eficiência da acção de cobrança coerciva, mediante a sua automatização generalizada e a utilização de ferramentas de cobrança coerciva em tempo real, nomeadamente em matéria de penhora de mercadorias em circulação”.
Este ano, o fisco já vendeu 906 imóveis penhorados, estando para venda outras 1198 casas, de acordo com os dados mais recentes publicados no site da AT, actualizados sexta-feira. Com a cobrança coerciva (onde se incluem as penhoras de casas), a AT arrecadou, no ano passado, 1148 milhões de euros. Um montante que o Ministério das Finanças dizia em Janeiro resultar da “modernização” da máquina fiscal e das reformas lançadas na actual legislatura.