O drogado alucinado que afinal era sensato

Pensem em Shadow of the Sun como uma enciclopédia: tudo o que aprendemos sobre psicadelismo está lá sintetizado. Se por síntese entendermos canções de sete minutos. Um órgão, uma guitarra e palavras incompreensíveis: digam adeus ao cérebro.

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Os Moon Duo, além da guitarra disfuncional de Ripley, têm os órgãos e sintetizadores neuróticos de Sanae Yamada

Ora, regressando à pertinente questão lançada no parágrafo anterior: como é que Ripley decide entre os seus dois amores? “Não existe uma regra fácil”, diz, “mas se uma canção tem baixo, como não temos baixo nos Moon Duo, vai para os Wooden Shjips”. Com toda a honestidade, os Moon Duo não precisam de baixo: além da guitarra disfuncional de Ripley, têm os órgãos e sintetizadores neuróticos de Sanae Yamada. É mais do que suficiente para uma prazenteira viagem à acidez do cérebro.

Os fãs a imaginarem que se Johnson tem duas bandas é porque, após muito ponderar, concluiu que precisava de veículos diferentes para criações diferentes e afinal é tão simples quanto: se não tem baixo, vai para os Moon Duo. Valha a verdade, pouco importa quem edita o quê: uma canção como Free the skull, terceiro tema de Shadow of the Sun, com os seus órgãos repetitivos e guitarras em espiral rumo aos céus, seria um grande naco de psicadelismo fosse qual fosse o nome que lhe pusessem na capa.

O próprio Ripley parece não se importar nada com o assunto. Ele está simplesmente feliz por poder fazer música e ser uma pessoa funcional. “Tendo a identificar-me com a história das acidentados do rock’n’roll”, diz a dada altura. “É uma coisa que tenho desde cedo. Quando és novo e ouves música e achas que ninguém te entende — bem, a arte é a única coisa que te entende.”

Estranhamente lúcido
Esta seria a última coisa que esperaríamos ouvir de um tipo cujo mais recente álbum parece ter sido feito sob o efeito de toneladas de drogas. “Eu não estava sempre drogado”, replica Ripley, em tom de garoto acusado pelos pais de cometer uma maldade da qual só é semi-responsável: não partiu a loiça da mãe, a loiça da mãe é que se pôs no caminho da sua brincadeira. “Só estava drogado de vez em quando”, continua, como se tivesse mesmo de justificar. “Gosto de estar drogado, não me entendas mal, mas estar sóbrio é importante para fazer um disco.”

“Nessa altura eu sentia-me um outsider, o que é a típica coisa romântica de adolescente”, continua Ripley, que, não contente com revelar as suas angústias, prossegue: “Estas coisas moldam a nossa maneira de ser, pela vida fora.” Vamos lá ponderar: o que esperamos das nossas estrelas do rock psicadélico e vanguardista? Um discurso anti-sistema, muita conversa sobre energias, o cosmos, o karma. Não com Ripley Johnson: o homem é estranhamente lúcido, demasiado honesto, bastante auto-consciente. Pelo menos quando diz: “De certo modo tenho muita sorte em viver nesta época: podemos ter o nosso culto, alguns fãs e levar uma vida normal. O mundo de malta como os 13th Floor Elevators [uma das grandes bandas psicadélicas que o mundo conheceu] se calhar era mais puro: não vendiam discos, mas podiam fazer tudo o que quisessem. Nós, por outro lado, podemos ter uma carreira quase convencional. Um tipo como eu ter uma carreira a fazer a música que faço — isto na década de 1990 seria impossível.”

Queríamos falar sobre aquele órgão fantástico de Free the skull, que põe todo o corpo a abanar, mas apanhámo-lo num dia em que estava particularmente dado à reflexão, de modo que Ripley Johnson parecia estar menos interessado em promover Shadow of the Sun do que em ponderar sobre como tudo isto é aleatório e como chegou aqui. O que não tem nada de errado — é só que Shadow of the Sun é de longe o disco mais pop que alguma vez pôs cá para fora e talvez fosse melhor para a sua carteira pôr as pessoas a falarem de Slow down low, a sétima faixa do disco, uma coisa a modos que geneticamente derivada dos Velvet Underground, e a ouvi-la, já agora, tendo em conta que é o mais próximo que alguma vez fará de uma faixa pop.

Ripley está em modo de recordação — no ano que vem passa uma década desde que os Wooden Shjips começaram a lançar singles, se calhar é disso. “Tivemos muita sorte, muita sorte mesmo, nunca esperámos tanta atenção.” Sabem aqueles momentos em que uma pessoa fica a olhar para o infinito? Não temos certeza, já que falámos ao telefone, mas podíamos jurar que ele estava a olhar para o infinito quando começou com esta conversa.

“Para teres ideia de como as coisas eram”, diz ele, sem notar que o tipo que lhe faz perguntas é mais velho (no rock’n’roll não é apenas suposto que os seus praticantes morram cedo — também se espera que quem escreve sobre a coisa seja uma criança, o que não está muito longe da verdade). “Aparecemos no início da época em que surgiram os blogues e de repente havia imensa gente a ter opinião, fora da imprensa convencional.” Sempre que ouvirem alguém usar a expressão “imprensa convencional”, fiquem a saber: essa pessoa consome rock psicadélico. “O nosso sentido de negócio era tanto que oferecemos o primeiro disco de borla. E acho que foram os bloggers que começaram a falar de nós e que obrigaram alguns media mais convencionais a prestarem-nos atenção." Sempre romântico, Ripley conta que adora “a ideia de se oferecer discos” como se estes fossem “uma fanzine de poesia, em que tiras fotocópias e já está, nem precisas de uma editora por trás”.

Na altura ele tinha uma espécie de premonição: “Quando o primeiro [e homónimo] disco dos Wooden Shjips saiu, nós achávamos que ninguém ia ouvi-lo, mas que alguém ia encontrá-lo numa loja, 20 anos depois. Hoje toda a gente reedita discos, mas na altura isso não acontecia, pelo que eu imaginei que o disco ia ficar perdido durante 20 anos, até que um dia alguém o encontrava e falava dele como uma obra-prima que passara despercebida.” Ou seja: que dissessem do trabalho de Ripley o mesmo que haviam dito acerca dos seus heróis.

Nos nove anos subsequentes houve meia-dúzia de discos dos Wooden Shjips e os Moon Duo, que só surgiram em 2009, também deitaram cá para fora muita coisa. O que faz de Ripley Johnson o homem mais trabalhador da história do psicadelismo. Acusação que ele se vê obrigado a negar: “Só escrevo para discos, não escrevo todos os dias”, começa por dizer. Depois a versão muda e afinal sempre que tem uma ideia musical grava “no telefone o que acabam por ser esquissos áudio”. E quando “é hora de trabalhar em canções”, reouve e desenvolve. Mais um bocadinho e chegamos a isto: “Às vezes há descanso, mas normalmente estou a trabalhar em discos. Acabo um disco, faço uma digressão, e começo a compor outro. Quando acabo de promover um disco estou com vontade de fazer outro.” O que praticamente faz de Ripley um James Brown do psicadelismo.

Convenhamos que isto dá mau nome ao rock’n’roll. Não fica bem a um tipo que faz canções para a mente se alienar admitir que tem de trabalhar na coisa. Mas ele, por esta altura, já não se importa muito com o que dizem: “Com os Wooden Shjips as coisas são diferentes, porque a banda tem um espectro mais restrito, é muito menos pop. Nos Moon Duo podemos fazer tudo o que quisermos, porque ninguém nos liga nenhuma.”

Não é bem assim: a enciclopédia de psicadelismo que constitui Shadow of the Sun tem deixado em baba muita gente com saudades dos tempos em que os Suicide faziam discos. Estes nomes ecoam ao longo do álbum, mas Ripley diz que não há nenhuma tentativa de imitar: “Somos músicos profissionais, mas não somos bons músicos. Se quisermos fazer um disco a soar a Bob Marley, vai soar a Moon Duo porque não sabemos tocar.”

Sendo assim, talvez em Shadow of the Sun os Moon Duo tenham tentado soar a Bob Marley — porque o álbum lembra mais depressa os Stooges a fazerem jams com os Silver Apples do que qualquer outra coisa. Ripley não quer saber. Este homem — que confessa ligar mais ao som de uma voz do que às palavras que esta canta, razão pela qual tem vergonha das suas letras — limita-se a falar da sua felicidade: “Tenho 42 anos. Quantas pessoas começam a ter sucesso no fim dos seus trintas, início dos quarentas?” Enquanto puder, ele vai continuar a tentar mudar a percepção dos nossos cérebros recorrendo a instrumentos. E, quem sabe, talvez dentro de 20 anos alguém pegue em Shadow of the Sun e diga que foi uma obra-prima que não passou assim tão despercebida.

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