Christian Petzold filma a Berlim do pós-guerra à sombra de Hitchcock
Com Phoenix, desde quinta-feira nas salas, o cineasta alemão conta a história de uma mulher em busca de si própria na Berlim de 1945, com a actriz Nina Hoss a invocar Kim Novak e Ingrid Bergman.
Oriundo da “escola de Berlim”, que renovou o cinema alemão nos anos 2000, Christian Petzold é o seu integrante que mais regularmente temos acompanhado: Phoenix é o seu quarto filme a estrear por cá, depois de Yella (2007), Jerichow (2008) e Barbara (2012) – todos eles interpretados por Nina Hoss. Sétima longa-metragem do cineasta e sexta colaboração entre actriz e realizador, e estreado esta semana nas salas portuguesas, Phoenix constrói-se todo à volta da presença de Nina Hoss. Aqui, interpreta Nelly, uma sobrevivente dos campos de concentração que tenta, na Berlim destruída e dividida de 1945, recuperar a vida que perdeu e a mulher que foi, por entre um ex-marido e uma melhor amiga que querem que ela se reinvente.
Phoenix é um retrato de uma mulher em busca de si própria, mas também um olhar sobre as cicatrizes morais de um país assombrado pela sua história – e o cinema de Petzold tem sido sempre fascinado pelos recantos escondidos do passado da Alemanha. A conversa, breve mas fervilhante de ideias, começou exactamente por aí.
Todos os seus filmes falam da história da Alemanha ao longo do século XX. Phoenix parece ser o que mais tem a ver com isso, mas é também o que mais fala da história do cinema...
É verdade. Enquanto escrevíamos o guião, perguntávamo-nos que canções se cantariam no cabaré onde Nelly reencontra o marido, e lembrámo-nos de uma canção de Kurt Weill chamada Licht aus Berlin [A luz de Berlim]. E existe um ensaio fantástico de uma grande crítica alemã, Frieda Grafe, num livro também chamado Licht aus Berlin, sobre os exilados alemães e austríacos, os realizadores e directores de fotografia que tiveram de abandonar a Europa devido ao fascismo e foram para Hollywood e aí ajudaram a criar o filme negro: Robert Siodmak, Fritz Lang... Pensámos tentar com Phoenix devolver essa "luz de Berlim" de 1945, como se fosse um filme feito nessa altura pelos exilados que regressaram, com a sua experiência e com a sua solidão. É por isso um filme também sobre o cinema.
Também o cinema europeu do pós-guerra? Lembrámo-nos do Terceiro Homem, de Carol Reed, dos filmes de Roberto Rossellini...
Sim! Antes da rodagem, temos sempre uma semana ou dez dias de ensaios, que passamos sobretudo a ver filmes. E um dos filmes que vimos foi Alemanha, Ano Zero, mas tenho quase a certeza – embora tenha algum medo de lhe perguntar – que, para a personagem de Nelly, a Nina estava a pensar na Ingrid Bergman de Stromboli. Alguém exilado numa ilha, sem ligações a ninguém, uma pessoa um pouco burguesa, que quer regressar à sociedade... A amiga dela quer reconstruir a sociedade, começar algo do zero na Palestina; a Nelly quer voltar atrás no tempo, até às raízes e ao seu passado, não aceita o que lhe aconteceu. Sabe que o tempo não pode voltar atrás, mas tenta consegui-lo.
Nelly deixa-se moldar pelo homem que ama, que não a reconhece, mas que a quer transformar na sua “antiga” mulher. É um pouco uma actriz nas mãos de um realizador.
É verdade, é um pouco uma metáfora da nossa relação. A partir de meio do filme, ela já não é uma vítima; interpreta um papel para si própria, contra o marido – ou contra o realizador.
Podemos considerar isso como um reflexo da vossa própria relação enquanto actriz e realizador ao longo dos filmes? Em Yella, por exemplo, ela interpreta alguém mais impotente, e, com cada novo filme, as suas personagens vão sendo cada vez mais assertivas.
Concordo. Rodei pela primeira vez com a Nina em 2001, e ela era uma bela mulher loura, uma actriz um pouco hitchcockiana... Ao fim de cinco, seis, sete dias de rodagem, ela representava como se fosse exilada, alguém muito solitário, muito isolado. A Nina diz-me, às vezes, que também quer representar uma mãe de filhas, uma pessoa carinhosa, mas que acaba sempre por gravitar para os papéis de lutadora.
É interessante que cite Hitchcock. Já lhe devem ter dito muito que Phoenix remete para Vertigo...
Sim, e tenho que dizer que é um dos meus filmes preferidos. Tenho com ele uma relação de amor e ódio... Kim Novak é uma actriz de Hollywood, construída em laboratório, porque os estúdios queriam outra Marilyn Monroe, criar uma nova estrela loura. Esse laboratório é um pouco a cave de Phoenix, onde Johnny quer criar uma nova Nelly. Mas Vertigo é contado do ponto de vista do homem; Marion, a personagem de Kim Novak, é apenas uma vítima, e o filme tem tudo a ver com a sexualidade do homem. No nosso filme, a história é contada do ponto de vista da mulher.
E Phoenix é sobre o amor.
Exacto. É algo que também discutimos com os actores. O Ronald Zehrfeld, que interpreta o marido, disse-me que sentia que tinha de a cheirar, de a sentir, de a tocar, e eu disse-lhe que não. Na Berlim de 1945, não existia sexualidade. Havia amor, traição, confiança, cobardia, sim, mas nada de sexualidade.
O que o atrai tanto para o passado da Alemanha?
Tem tudo a ver com o cinema. Os italianos tiveram o seu neo-realismo, que falava do país em que viviam naquela altura, tal como os romenos têm hoje um cinema que fala do seu país. Mas os alemães não. Os italianos tinham Rossellini, Antonioni, viajavam e mostravam como viviam, enquanto os alemães faziam um cinema escapista, filmes de montanha, comédias bávaras...
Mesmo apesar do novo cinema alemão dos anos 1970? Fassbinder, Herzog, Wenders...
Sim, mas isso foi muito mais tarde, depois de 1968, e eles também tiveram esse problema. Diria que entre 1939 e 1945 perdemos os nossos pais. E tivemos de procurá-los fora da Alemanha, ou então exilados, porque não temos essa tradição de cinema. Fassbinder encontrou o seu em Douglas Sirk, Wenders encontrou o seu em John Ford. E nós temos de fazer o mesmo.