O terror do Boko Haram desenhado pelas crianças

“Foram ter com as pessoas que estavam à beira da água e dispararam contra elas, na cabeça”, conta Soumaila Ahmid. Com canetas de feltro conta o que viu os membros do grupo radical islamista que controla parte do Nordeste da Nigéria fazerem.

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Desenhos deitos no atelier/escola do campod e refugiados de Dar-es-Salam PHILIPPE DESMAZES/AFP

Frente à grande tenda branca da Unicef, está uma multidão. São dezenas de rapazes vestidos com roupas poeirentas, que se acotovelam e riem à gargalhada, antes de serem chamadas à atenção pelos animadores. Todos querem participar no atelier de desenho organizado no espaço “Amigos das crianças”.

Mas quando ficam frente à grande folha de papel branco, caneta de feltro na mão, o silêncio instala-se. O tema do dia é doloroso, e cada um deles se concentra para reconstituir o fio dos acontecimentos que testemunhou quando os islamistas atacaram a sua aldeia.

Soumaila Ahmid diz que tem 15 anos, mas não lhe daria mais de 12. “No dia do ataque estávamos à nossa porta quando vimos os Boko Haram. Foram ter com as pessoas que estavam à beira da água e dispararam contra elas, na cabeça”, conta o rapaz de olhos amendoados.

De cócoras, desenha com afinco uma embarcação de forma abaulada e cadáveres flutuando num rio: “Há os que conseguiram entrar em canoas, estão a fugir. Os outros estão mortos”, diz, sem pestanejar.

Esquecer o quotidiano
Outro desenho, outra cena de causar arrepios na espinha. “Este homem está em casa. Está a arranjá-la mas ouviu tiroteio lá fora. Quando vai ver o que se passa, um Boko Haram atira e pega-lhe fogo”, explica Nour Issiakam, também ele com 15 anos. Com se contasse uma história banal, conclui: “O homem tenta sair mas não consegue: toda a casa está a arder”. Será queimado vivo.

“Desde que começamos esta actividade [o desenho], precipitam-se para se inscreverem”, diz o responsável do atelier, Ndorum Ndoki. “Eles desenham e depois podemos falar. Foi preciso levá-los a abrirem-se, o que não era fácil no início. Hoje estão orgulhosos de serem ouvidos.” A equipa que com eles trabalha tenta “identificar” os que se isolam, ou que parecem ainda muito próximos da tragédia vivida, para tentarem evitar que o trauma se instale, explica.

Todas as tardes, os ateliers de desenho são também ocasião para, entre dois jogos de futebol, o tricot, ou o ludo, abordar outros temas, como o amor ou a escola.

É um parêntesis durante o qual as crianças enganam o tédio e esquecem um pouco o quotidiano do campo, pontuado pelo racionamento de alimentos e pelo calor infernal desta área de deserto, a uma dezena de quilómetros dos bancos do lago.

“Nunca tiveram uma caneta”
Perto de 800 crianças estão também a ser aprender na “escola de emergência” – oito grandes tendas abertas em Janeiro pela Unicef.

“Antes não conheciam nada da escola, ainda que alguns tivessem tido ensino corânico. Muitos nunca tiveram uma caneta, mas eles aprendem depressa”, garante Oumar Martin, um animador camaronês que viveu anos na Nigéria e que se viu no fluxo de 18 mil refugiados que vieram para o Chade.

No Nordeste da Nigéria, maioritariamente muçulmano e durante muito tempo abandonado pelo poder central, jovens que não falam outras línguas que haussa ou kanuri “constroem já frases em inglês e balbuciam de forma dificilmente compreensível algumas palavras em francês”, diz.

Nos bancos da escola, encontram-se “crianças grandes” que ultrapassaram já os 20 anos, mas querem, eles também, aprender a ler e a escrever.

De piroga ou a pé, a maior parte desses jovens viveram uma fuga perturbante, perseguidos mesmo já em águas chadianas. Mais de 140 de entre eles chegaram sem os pais, perdidos na confusão ou mortos pelo Boko Haram.

Mahamat Alhadji Mahamat, 14 anos, demorou quase uma semana a chegar ao campo de Dar-es-Salam, junto a Baga Sola. De ilha em ilha, com os tios, escondia-se de dia e avançava de noite. Os pais, esses, ficaram na Nigéria.

No seu desenho, alguns pássaros voam ao lado de um camião carregado de armas de vários tamanhos. “Nunca poderei esquecer o que vi”, diz, com um sorriso tímido. “Houve mesmo crianças que nasceram na estrada, durante a fuga. Quando encontro essas crianças [no campo], não posso deixar de pensar nisso…”

“Mas vou aprender e um dia voltarei a casa, na Nigéria.”

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