“Eça gostava do Brasil mas non troppo”
O século XIX de Eça de Queirós, Machado de Assis e do romance de adultério. O professor da Universidade de Coimbra Carlos Reis abriu os encontros Minha Língua, Minha Pátria na Livraria Cultura, em São Paulo.
Foi aí, naquela que é uma das mais bonitas livrarias de São Paulo, num auditório aberto rodeado de prateleiras e mesas com livros que Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra e especialista em literatura do século XIX e XX, abriu os encontros Minha Língua, Minha Pátria, que vão juntar até ao dia 15 escritores portugueses e brasileiros. O programa é organizado pelo PÚBLICO com a Livraria Cultura, tendo como parceiros o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua e a Universidade de Coimbra.
Foi já quase no final da sessão Eça de Queirós ou a língua como pátria ausente, moderada pela directora adjunta do PÚBLICO Simone Duarte, que veio a pergunta que levou o académico ao tema do adultério. Carlos Reis já tinha lembrado que Eça, na sua correspondência com Ramalho Ortigão, também da Geração de 70, lhe pedia que o criticasse, que lhe dissesse se ia pelo bom caminho e lhe assegurasse que não estava apenas a imitar Balzac. Na plateia, um rapaz quis saber se três importantes romances da literatura mundial – Madame Bovary, de Flaubert; O Primo Basílio, de Eça de Queirós; e Dom Casmurro, de Machado de Assis – não seriam a mesma história contada de forma diferente. Em resposta, Reis informou que iria juntar àqueles três outros tantos títulos. Lembrou então os romances Effie Briest, do alemão Theodor Fontane; Anna Karenina, do russo Tolstói, e La Regenta, do espanhol Clarín. “Ou seja, estes são os títulos daquele que foi um grande subgénero do romance do século XIX, o romance de adultério. E vários escritores, incluindo Clarín, foram acusados de plagiar Flaubert. O que acontece é que o tema do adultério – entenda-se feminino – era o tema que estava na ordem do dia naquela época. Esses três romances que mencionou, no fundo, vão-se continuando uns aos outros. De certa forma, estes grandes escritores estavam todos a escrever o mesmo romance.”
Carlos Reis, que começou a estudar Eça de Queirós quando tinha 20 anos e é o coordenador das edições críticas desde 1992, lembrou ainda que o autor de Os Maias fazia um retrato de costumes que não era embelezado e que o tema do adultério se inseria aí. Era um grande escritor de romances, de ficções, e foi, sobretudo, um grande criador de personagens. “É um escritor que inovou na sua língua e não só por inventar palavras – isso todos os escritores o fazem, faz parte da sua obrigação profissional renovar a língua e revolucioná-la. Mas muito poucos conhecem o privilégio de ter deixado uma palavra à língua portuguesa que está hoje dicionarizada e que identifica uma personagem de Eça de Queirós: acaciano [o conselheiro Acácio, personagem do romance O Primo Basílio]”, explicou o professor. “Diz-se de alguém que é acaciano, como se diz que é hamletiano (de Hamlet) ou quixotesco (Dom Quixote de La Mancha) ou bovarista (Madame Bovary). Só os grandes génios são capazes de criar personagens que ficam para além do desaparecimento das suas obras e que entram na língua sem que o próprio escritor se aperceba disso no seu tempo”, acrescentou.
Os caixeiros do Rio
Claro que estando Carlos Reis a falar para uma plateia maioritariamente de brasileiros – onde se destacava outra especialista na obra deste autor português do século XIX, a professora Elza Miné, e também a dramaturga Maria Adelaide Amaral, que fez a adaptação de Os Maias para a minissérie de televisão que a Rede Globo exibiu em 2001 – não podia deixar de referir que Eça de Queirós, que nunca esteve no Brasil, deveria ter começado a sua carreira de consulado precisamente por este país, estava destacado para a Bahia. Mas isso não aconteceu.
“Eça gostava do Brasil mas non troppo. Não tenhamos muitas ilusões quanto a isso. Eça escrevia para o Brasil porque precisava de arredondar o salário.”
Lembrou que a académica Elza Miné, na plateia, publicou um livro sobre a actividade jornalística de Eça no Brasil, onde citava uma carta que escreveu a Jaime Batalha Reis, outra das figuras da Geração de 70, a propor que escrevessem uns textos para um suplemento brasileiro e que lhe dizia: "'No fundo, aquilo são noções fundamentais de ciência para os caixeiros do Rio.' Como se dissesse são intrujices literárias facílimas de fazer. Não era uma imagem muito nobre do que era o leitor no Brasil”, concluiu o professor.
Mas Eça acabou por escrever muito para a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e para O Estado de São Paulo, ou melhor, a Província de São Paulo, como então se chamava. Carlos Reis explicou que logo depois de ser publicado em livro, em Portugal, Os Maias foi publicado em folhetins, como nesse tempo se fazia, na Província de São Paulo ( a publicação, quase diária, durou de 12 de Agosto de 1888 a 6 de Janeiro de 1889). Este facto que durante muitos anos escapou aos investigadores foi descoberto por João Alves das Neves, um jornalista português que viveu no Brasil e morreu em 2012. “Por que razão Eça fez isto?”, questionou o professor, tal como o fez com outras obras, nomeadamente com A Relíquia e uma parte d’ A Correspondência de Fradique Mendes, que foram publicadas na Gazeta de Notícias em 1887 e em 1888? “Porque Eça de Queirós era tão lido no Brasil que haveria a tentação de se fazerem edições clandestinas.” Era a forma de evitar edições piratas, já que o escritor tinha leitores no Brasil desde os seus primeiros livros.
O discípulo de Machado de Assis
Como se vê até pela “já muito estudada” polémica que o autor português teve com o seu contemporâneo brasileiro, Machado de Assis. Em Março de 1878 aparecia no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, uma longa crítica extremamente severa a O Primo Basílio e à segunda versão de O Crime do Padre Amaro assinada por um pseudónimo de Machado de Assis, Eleazar.
“Depois desta crítica, Eça passou a escrever de forma diferente”, diz. “Por isso pode dizer-se que Eça foi discípulo de Machado.”
Na segunda versão de O Crime do Padre Amaro, o padre matava o filho “num acto de grande crueldade e numa descrição sombria e sinistra. O que foi muito criticado em Portugal, nomeadamente por Camilo Castelo Branco, que disse que era um erro porque ‘em Portugal os padres não matam os filhos, criam-os como sobrinhos’” [gargalhadas na livraria].
Era de facto um episódio cruel e Machado de Assis criticava essa crueldade. "Eça de Queirós suprimiu esse episódio na terceira versão e alterou vários episódios que Machado criticava especificamente. Percebeu a lição”, afirma Carlos Reis. O prefácio que deveria ter acompanhado a terceira edição do livro era também uma reacção a Machado de Assis, embora sem nunca dizer o seu nome. Tinha um tom desabrido e sarcástico e era uma resposta ressentida. E o escritor nunca chegou a publicar esse texto contra o brasileiro. “O silêncio de Eça não foi inocente. Para mim, significa: este grande escritor tem razão.”
Não houve grandes relações epistolares entre os dois. “Eça escreveu uma carta a Machado a que este, que se saiba, nunca respondeu”, lembra Carlos Reis, que terminou a sessão com a leitura de uma carta que Machado de Assis escreveu pouco depois da morte do escritor português em Agosto de 1900. “Meu caro Henrique Chaves, que hei-de dizer que valha esta calamidade? Para os romancistas, é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido.”
Neste sábado, às 19h30, Gonçalo M. Tavares subirá ao palco e, no domingo, será a vez de Jerónimo Pizarro e Adriana Calcanhotto dialogarem sobre Fernando Pessoa (às 16h). O dia termina com o vencedor do Prémio Leya 2014, Afonso Reis Cabral (às 18h).