No palco, Maria João Luís está em casa e respira melhor
Maria João Luís é, por estes dias, Alexandra del Lago, estrela do cinema caída em decadência, enfiada num túnel escuro do qual não se vê sair. Doce Pássaro da Juventude, texto de Tennessee Williams debruçado sobre um tempo que teima em escapar, encontra no São Luiz uma actriz em estado de graça.
No quarto de um hotel onde se registou como Princess Kosmonopolis, usa todos os expedientes para não dar espaço ao presente. Tem haxixe marroquino do melhor, álcool em barda, um jovem amante/motorista cujo nome nem se lembra, tudo quanto a possa anestesiar e impedir de recordar que, passados 15 anos sobre a sua batida em retirada dos palcos e dos plateaus enquanto diva do cinema, resta-lhe apenas esse passado glorioso, uma juventude totalmente gasta. “Não há refúgio quando nos retiramos de uma arte”, desabafa com Chance Wayne, o jovem bem-parecido com quem partilha o quarto e uma relação enquistada com o passado. “Ou se morre ou se encontra outra coisa. Isto é a minha outra coisa.” E a outra coisa de Alexandra del Lago é este pânico da consciência, do agora, esta falta de ar que a obriga a ter sempre uma botija de oxigénio por perto e comprimidos que a roubem o mais possível à realidade.
No palco do Teatro São Luiz, na encenação de Jorge Silva Melo de Doce Pássaro da Juventude, Alexandra del Lago tem o corpo e a voz de Maria João Luís. Durante um breve período, há algumas semanas, enquanto ia procurando ajustar-se na personagem de Tennessee Williams, a actriz teve uma crise de sinusite. “A sensação que tinha às vezes era que não ia conseguir ensaiar”, recorda. “Estava muito fraca, tinha suores frios, sentia-me mal. Mas quando o ensaio arrancava era como se todas essas coisas fossem só possibilidades. A fragilidade física numa zona destas, de decadência, é fantástica e, portanto, fui usando tudo isso.” Findo o ensaio, a dor e o mal-estar recomeçavam do ponto onde tinham ficado. Enquanto se passava para o território de Alexandra del Lago, “era como se o tempo parasse” e Maria João Luís vampirizava a sua própria fragilidade. Depois, ficava a braços com uma verdade tão malfazeja quando inútil.
Essa sensação de que o tempo pára e suspende a vida deve-se a uma constante interrupção, por vezes durante meses, da sua própria existência. Maria João Luís coloca-se em pausa, fica de empréstimo a personagens com as quais não se confunde mas às quais entrega a sua energia e esgravata até encontrar um subsolo comum, a partir do qual a personagem possa por fim germinar com aquilo que lhe pode dar. “Sei aquilo que sou, apesar dos papéis todos que fiz”, afirma. “Às vezes não tenho é tempo para… crescer. Crescer naquilo que sou. E isso é um pouco Alexandra del Lago. Talvez a única coisa dela que sinto perto de mim seja essa coisa de ter representado tanto, ter interpretado tantas personagens e vivê-lo tão intensamente que me entreguei a uma espécie de ausência de tempo.” Alexandra del Lago não teve tempo, Tennessee Williams não lho deu, para se encontrar enquanto mulher para lá da actriz. Foi de existência interrompida em existência interrompida até se retirar de cena e sobrar apenas um ser desnorteado, às apalpadelas no escuro, no completo breu. Por isso a falta de ar de uma mulher sufocada, encurralada, sem saber para onde se virar que não na direcção de um passado que a encandeia. Para a frente, contrapõe a actriz, “um túnel escuro”.
“Aquilo que procuro quando faço a personagem é essa zona do túnel escuro e do desespero”, diz. “Algo que todos já sentimos; todos já estivemos nesse sítio alguma vez na vida. Durante a adolescência acontece muitas vezes passarmos por momentos extremamente depressivos e angustiantes de acharmos que não há um futuro para nós, de acharmos que não conseguimos continuar e não sabemos como seguir em frente. E ao longo da vida vão-se repetindo momentos desses.” A diferença é que as angústias na adolescência prendem-se, muitas vezes, com quem se quer ser no futuro; as de Alexandra del Lago residem na sua impossibilidade de poder continuar a viver nos seus anos de estrela do teatro e do cinema, de uma beleza radiante, venerada e invejada. Daí que, no quarto de hotel onde a encontramos com Chance, Alexandra tenha fatalmente de se sentar e olhar no espelho. E o que vê é uma imagem desgastada, cruel, vazia, os despojos de uma vida que já acabou.
“Tenho a sensação de estar presa numa ratoeira”, diz Alexandra del Lago às tantas, no magnífico diálogo que nos introduz nestas duas personagens em processos simultâneos de querer regressar ao passado – Chance Wayne, apesar dos 29 anos, volta à pequena cidade de St. Cloud na esperança de recuperar Heavenly, filha de um político desenhado a traço grosso, com quem deixou um amor inacabado. Mas voltemos à ratoeira de Alexandra: “É como se alguém que eu amasse tivesse acabado de morrer e não conseguisse lembrar-me de quem é.” Mesmo em frente do espelho, Alexandra teima ou finge não se ver.
Teatro para pessoas vivas
Se o futuro de Alexandra del Lago pode assemelhar-se a um túnel escuro, difuso, atordoado por drogas, álcool e fármacos alienantes, o de Maria João Luís, aos 51 anos, não podia ser mais concreto e longínquo. O número de projectos em marcha somado àqueles a que prevê dedicar-se em seguida preenche-lhe o calendário até 2018. Assim que desacelera do ritmo de uma peça ou de uma telenovela, enche a cabeça de textos que “tem” de fazer. Foi assim com A Solidão nos Campos de Algodão, a densa obra de Bernard-Marie Koltès, que representou e encenou com Rita Blanco no final de 2014. Há muito que sonhava com esta peça que diz ser “para a malta se espalhar: ou se faz de uma forma evidente ou se procura uma zona não evidente e corre-se esse risco de espalhar”. “Às vezes espalhávamo-nos, outras vezes agarrávamos aquilo. Mas era muito difícil”, desabafa.
A reacção de Maria João Luís perante os espalhanços é também uma outra forma de negação da essência de del Lago: não fica a remoer. Nunca se esquiva a analisar aquilo que possa ter corrido menos bem, mas a sua resposta, inquieta, é a de se lançar de imediato para outro projecto. “Tenho dias em que posso estar a fazer um espectáculo em que sinto que cheguei a uma coisa boa, mas que não corre bem”, exemplifica. “E se isso acontecer, o importante é não defraudar o público, manter os sentidos todos bem despertos para ir contando o melhor possível aquela história. Só que nessas ocasiões não há nada a fazer, não vale a pena pensar demasiado, porque isso depois pode ser perigoso, pode castrar, pode criar infelicidade. E o palco deve ser feito de felicidade, de prazer.”
Daí que não perca tempo na ruminação desses passos menos seguros, fechando a porta a arrependimentos ou fantasmas das suas escolhas. “Não sou uma Alexandra del Lago”, repete. “Tenho sempre a sensação de que no dia em que não quiser ser actriz tenho outras coisas que gostava de fazer, sinceramente.” Por exemplo? “Gostava de ser jardineira. Seria tão feliz – com tempo para acordar, não me preocupar, ficar só a usufruir daquilo que um jardim nos pode oferecer de beleza e tratar desse jardim, ser cuidadosa com ele e viver assim. É um sonho que tenho, mas não é possível.” A demonstração prática dessa impossibilidade está já assegurada pela maneira como o seu semi-retiro para a pequena cidade alentejana de Ponte de Sor tem sido vivido. Com o marido Pedro Domingos (ex-músico punk-hardcore dos Osso Duro de Roer, sendo que a actriz participou também em espectáculos dos Censurados e dos Tara Perdida), fundou há sete anos o Teatro da Terra, companhia fundada com o desígnio de desenvolver um projecto a longo prazo com a comunidade local. É isso que têm feito, com notável sucesso. Mas em Ponte de Sor, quando podia afinal criar um tempo para si e para outros escapes, logo o teatro lhe tomou conta dos dias.
A dilatação no tempo é, de resto, um dos grandes fascínios de Maria João Luís. Agrada-lhe sobretudo dedicar-se a projectos teatrais como Doce Pássaro da Juventude, com os Artistas Unidos, em que a carreira mais alargada (no São Luiz, mas também na digressão que se segue) lhe permite descobrir possibilidades novas constantes. A peça não cristaliza na estreia e espraia-se muito além disso, um permanente corpo mutante que admite o erro, a falha, o imprevisto e a integração de tudo isso no espectáculo. É essa humanidade suja, menos asséptica e higiénica do que a televisão proporciona, “o ser humano visto à lupa”, que a actriz acredita estar na base do teatro e de um público mais assíduo e interessado. “Acho que as pessoas querem ver outras pessoas vivas”, argumenta. “Não é o facebook, os computadores, o cinema ou a televisão, que ficam noutro registo. Às vezes a sensação que tenho é que quando vejo filmes na televisão ou vou ao cinema, por muito que de vez em quando surja alguma coisa extraordinária, estamos quase sempre a mastigar uma pastilha elástica. Nas séries parece que está sempre tudo igual, tudo na mesma zona. E não é que esteja; nós é que estamos sempre no mesmo sítio a ver. Não nos deixamos surpreender. Também não gosto de ver coisas agressivas, mas quase todo o cinema hoje em dia é agressivo e violento. Compreendo, porque é a vida, a sociedade é isso, mas é sempre o mesmo ritmo.”
Teatro para dois
Nunca tendo sido uma actriz refém das expectativas ou cativa da adulação popular, Maria João Luís afirma-se, ainda assim, “cada vez mais livre” de qualquer ansiedade criada pela insegurança da validação exterior. Quando se sente “confortável” no papel, sabe que está preparada para “a troca” com o público, por muito que possa depois revelar-se menos eficaz do que esperava. “Já fiz espectáculos em que me surpreendi imenso porque acredito sempre muito, acho sempre que aquilo que faço está o mais sério possível”, confessa. “Pus lá o meu sangue e os meus cartuchos todos e se a troca com o público não se dá pergunto-me o que terá falhado.” O mais habitual, no entanto, é que o público se divida, preferencialmente com os conquistados num número esmagadoramente superior aos cépticos.
Aquilo que é raro, e que já lhe aconteceu em O Baile ou Stabat Mater, é o “absolutamente extraordinário de fazer algo que preenche todos os grupos.” “No Stabat Mater sentia que ao fim de cinco minutos as pessoas estavam todas na mão. Todas. Podia fazer o que quisesse. Podia dançar e dançávamos todos.” No monólogo vertiginoso de Antonio Tarantino, encenado em 2006 por Jorge Silva Melo, primeira das colaborações entre encenador e actriz – seguir-se-ia, em 2010, Hedda, Ibsen revisto pela mão de José Maria Vieira Mendes –, Maria João Luís entregava-se à espiral de ira e desespero de uma mãe cuspida para a margem em busca do seu filho, numa interpretação tão prodigiosamente intensa que o início complicado da carreira no Convento das Mónicas, com sessões para um público pouco numeroso, rapidamente deu lugar a sessões esgotadas umas atrás das outras.
Numa das primeiras apresentações, aquela que Maria João Luís escolhe como “o melhor espectáculo” que fez de Stabat Mater, interpretou a história da mãe ex-prostituta para apenas duas pessoas. Em lugar do desânimo, alega que a situação de ter um público reduzido lhe acicata “a vontade de preencher aquelas pessoas, de lhes mostrar que o teatro é isto – alguém que se senta para ver uma outra pessoa representar, e existir um alguém, uma pessoa que seja, é suficiente para arrancar esse motor”. Mesmo que no palco estejam 10, 15, 20, e na plateia apenas um. Nessa altura, paradigmático da sua capacidade de saltitar entre registos e da sua necessidade de não se focar num único projecto em cada momento – “Sofro muito menos se estiver a fazer várias coisas, sem me inquietar demasiado”, explica –, a actriz filmava a novela Doce Fugitiva durante o dia, “em que fazia uma tia completamente louca, com um croissant na cabeça”, e à noite estava por conta de Stabat Mater. “Claro que quando acabava o Stabat, as pessoas vinham ter comigo e eu pairava, não via ninguém”, lembra. “Ficava na tal zona em que o tempo pára. Isso acontece muitas vezes. Sempre que estou em cena sinto-me um atleta de alta competição, a correr para a meta, a dar tudo para chegar lá. Depois, quando acaba, fico assim meio aérea.”
Esse estado de transe e de alteridade, com que a vemos encarnar a desorientação de Alexandra del Lago, é o seu lugar. “O palco é cada vez mais o meu sítio, talvez por ter existido pouco fora dele”, arrisca. Percebeu-o desde que, depois de andar a declamar poesia de Herberto Helder no Chiado e em bares da Graça, se sentou aos 18 anos pela primeira vez na plateia d’A Barraca, acabada de ser integrada no elenco de O Baile – peça em que Ettore Scola se baseara para o filme homónimo que Maria João tinha visto repetidas vezes no Cinema Quarteto, fugida das aulas na António Arroio. “Isto é a minha casa, faz sentido estar aqui. Aqui respiro bem”, pensou na altura. E acrescenta agora: ”Aqui respiro fundo, como diz a Alexandra del Lago.”