"A infância está privada do estatuto de cidadania"
Não há maior obstáculo à ideia de criança-cidadã do que o estatuto que remete a infância para a fragilidade, diz Gabriela Trevisan, professora adjunta na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, no Porto
A infância está privada do estatuto de cidadania?
Está, se tivermos em conta o estatuto pleno de cidadania, o acesso a um conjunto de direitos como o de participação.
Pela forma como encaramos a infância?
Sim. Há vários factores, mas o maior obstáculo é o estatuto de infância. A infância tem um estatuto ambíguo. Por um lado, há a valorização das crianças, a necessidade de as proteger, de construir mundos seguros para elas viverem. Por outro, há um recuo quando se quer envolvê-las num conjunto de processos que apelam à ideia de que são competentes e têm voz própria. Temos mais tendência para a ideia de vulnerabilidade, de fragilidade, do que de competência. As crianças têm muito mais a dizer e pensam muito mais sobre as coisas do que nós, adultos, achamos.
Procurou o contrário.
Procurei perceber a partir das próprias crianças o que elas entendem. E elas sabem falar sobre a escola, sobre o mundo que as rodeia, sobre a cidade, sobre a pobreza. A sua visão não é necessariamente igual à do adulto. É uma visão própria, distintiva. Precisamos de estar preparados para a receber.
Como?
Temos de trabalhar mais esta ideia de como é que nós chegamos à voz delas. Na Universidade do Minho tentamos encontrar formas de conseguir recuperar a voz das crianças nas suas múltiplas expressões. Não olhamos só para o que falam ou escrevem. Olhamos também para as brincadeiras, para os desenhos. Muitas vezes, o problema não é exprimirem-se, é interpretarmos o que dizem. Quanto mais vamos estando com as crianças, mais vamos percebendo o que querem dizer.
Debruça-se sobre a escola e a cidade, não a família. Porquê?
Queria estudar a participação das crianças numa perspectiva mais política. Interessava-me ver, em contextos públicos, a infância enquanto colectivo competente em matéria de tomada de decisão.
Mas as crianças acabam por falar na família.
Sim, referem um conjunto de decisões que tomam no ambiente familiar. São decisões micro, que têm a ver com os pais, os avós, os tios. Referem grande disponibilidade dos adultos em consultá-las em assuntos muito simples como o que fazer para o jantar. Noutros maiores, como o destino de férias, as decisões cabem aos adultos. Mas o espaço familiar parece ser o mais participativo.
A escola é, por excelência, o espaço de construção da criança-política?
Frequentei uma escola e centrei-me numa turma com um professor que cria mecanismos de participação na vida escolar, mas não se pode generalizar. Cada escola tem uma dinâmica. Agora, a escola é um espaço de desenvolvimento de capacidade de liderança, de construção de alianças, de negociação, de diálogo. E tudo isso são competências de nível político que as crianças adquirem. Não estou a falar de educação para a cidadania. Estou a falar de vivência dentro e fora da sala de aula. Na relação com o grupo de pares, as crianças vão construindo forma de ver o mundo e de se situarem nele.
E na cidade?
Em Portugal há várias cidades amigas das crianças [programa da UNICEF, que desafia as cidades a tornarem-se mais respeitadoras dos direitos das crianças, incluindo do direito de participação na definição das políticas de cidade], mas nem todos os municípios desenvolveram acções específicas. Aveiro assinou o protocolo. Tive oportunidade de observar como essa experiência foi construída. Começaram a trabalhar com crianças das diferentes escolas para perceber que perspectivas têm da cidade e o que alterariam. É um processo muito interessante: reunir visões de adultos e de crianças para perceber que cidade seria desejável para todos.
E que cidade é desejável?
Há adultos que têm medo que as crianças definam uma cidade só para as crianças, mas não. Participaram numa assembleia municipal de Aveiro em que a questão era mesmo essa e mostraram ter uma consciência muito clara do que é a cidade. Colocaram questões ao nível do ambiente, da economia, da situação social. Têm uma preocupação forte com a geração mais velha.
Qual?
Acham que há muito idosos sozinhos. Sugerem que se crie um grupo de voluntariado jovem que os possa apoiar. Preocupam-se também com a degradação urbana, com a conservação do ambiente e com questões mais suas. Disseram, por exemplo, que na cidade devia haver bicicletas para os mais pequenos. As BUGA [Bicicleta de Utilização Gratuita de Aveiro] são só para adultos. Isto não é substituir os adultos, é ter uma visão igualmente válida sobre a cidade.
Estamos a falar de crianças dos oito aos 18?
Sim. Elas partilham umas preocupações semelhantes e outras distintas. Propõem soluções e têm consciência de que há limites. Destacam o voluntariado, as parcerias com as empresas e os patrocínios na recuperação urbana, por exemplo. Disseram que estavam disponíveis para pintar espaços se isso fosse uma prioridade. O que propõem no fundo são soluções concretas. Possíveis.
E quando têm de escolher?
Elas têm consciência de que é preciso priorizar. E nessa priorização usam critérios que são óbvios, como a urgência, o alvo, o custo. Têm consciência de que não é possível fazer tudo. No início, falavam muito num skate park, por exemplo. Deixaram cair isso durante a discussão. Perceberam que há grupos que precisam de outras coisas e que são mais importantes.
Ganharam uma nova consciência?
Depois da participação na assembleia municipal, referiram muito o facto de terem estado com crianças de outras escolas, mas o que mais valorizaram foi o terem tido oportunidade de ter acesso a outras formas de ver a cidade e de discutir. Também valorizaram muito terem tido acesso a um espaço onde a voz delas teve protagonismo. A presença delas foi principal e não acessória.
O que falta para haver mais cidades a ouvir a crianças?
É talvez necessário que haja um compromisso político por parte do poder local em mobilizar-se nos processos de escuta e envolvimento das crianças nas suas cidades e comunidades, e adultos disponíveis a concretizarem essas iniciativas, juntamente com elas. Esse processo implica que as estruturas de poder local criem diferentes estruturas e mecanismos de audição das crianças e jovens que não são sempre fáceis de implementar.
Uma pessoa faz 18 anos e, de repente, há um monte de coisas que pode fazer, como votar, conduzir.
É uma espécie de cidadania instantânea. Mas ninguém começa a participar de repente só porque pode. Os espaços de participação fazem sentido até numa lógica de aprendizagem, de se começar a perceber desde cedo como fazer.
Teríamos menos abstenção entre os jovens de houvesse mais espaços de participação nas escolas e nos municípios?
A abstenção [entre eleitores mais jovens] pode ter a ver com sentimento de desfiliação que as gerações mais novas têm com métodos formalizados. O voto é híper formal. Experiencias mais directas são mais apelativas. Às vezes, questiono também até que ponto esta geração mais jovem sentirá que há um reconhecimento dos seus problemas. Há autores que dizem que se houver culturas de participação na infância e juventude eles estarão mais envolvidos com processos de decisão ou mesmo o voto. Talvez sim. Mas é necessário que essas experiências sejam construídas de formo significativa. Às vezes, corremos o risco de estar a construir experiências que são significativas para os adultos mas não para as crianças.
Como evitar cair nessa armadilha?
O melhor é ouvir as crianças sobre assuntos em que elas têm uma palavra a dizer. Às vezes, ouço discursos entusiastas de que as crianças querem ser envolvidas em tudo a todo o tempo, mas não. Nalgumas situações não querem nem devem ser ouvidas - envolvê-las pode nem sequer as beneficiar. Mas é frequente pensarmos que as ouvimos e não termos em conta as suas opiniões. Penso que não será apenas importante ouvi-las, mas tornar significativo aquilo que dizem.
Viu isso em Aveiro?
Sim. Há assuntos que as crianças e jovens sentem que o poder local é que tem de decidir. Noutras é ao contrário. Não faz sentido para eles que adultos programem visitas para crianças sem as consultar, por exemplo. No limite, há sempre possibilidade de crianças e adultos negociarem agendas.
Para isso é preciso o quê?
É preciso haver adultos dispostos a abdicar um pouco do poder que têm. Este poder em algumas dimensões é inconsciente. Temos ideia que o adulto sabe o que é melhor para a criança. Na maioria das vezes, sabe. Não é isso que se contesta quando se fala na participação, mas em dialogar com as crianças sobre aquilo em que elas gostariam e ter um papel mais preponderante.
Também há o oposto dito tudo, crianças que falam por cima dos adultos, que decidem as suas agendas.
A infância não é uma realidade homogénea. Discutir o direito de participação as crianças não é dizer que a partir de agora se atende apenas ao que a criança diz, não é virar o mundo ao contrário, é construir um mundo mais equilibrado entre o que são as visões dos adultos e as visões das crianças.