O mestre das paixões
O Museu Nacional do Prado reúne pela primeira vez três obras fundamentais do pintor flamengo Rogier van der Weyden. Um encontro dificilmente repetível a que assistem dois portugueses: Nuno Gonçalves e Domingos Sequeira. Um bom motivo para ir a Madrid até 28 de Junho.
Garante Campbell (Escócia, 1946) que Rogier van der Weyden, exposição a que se acrescenta o subtítulo E os Reinos da Península Ibérica, é uma “verdadeira e rara celebração” porque nela se reúnem pela primeira vez as três pinturas que com “grande segurança” se podem atribuir a este artista, um dos mais influentes da Europa do século XV. “À semelhança dos seus contemporâneos, Van der Weyden [c. 1399-1464] não assinava as pinturas que fazia e é por isso que as atribuições estão longe de ser uma ciência exacta e livre de discussão, a não ser que haja documentos a certificarem a autoria, a origem. É o que se passa no caso das três obras centrais que aqui temos.”
As três pinturas a que se refere este historiador de arte escocês que dedicou os últimos 40 anos ao estudo dos primitivos flamengos e, em especial, a Van der Weyden, a quem chama “o grande mestre das paixões”, são A Descida da Cruz (c. 1435), uma das peças fundamentais da riquíssima colecção do Prado, o Tríptico de Miraflores (1445), um empréstimo dos Museus Estatais de Berlim, e O Calvário (c. 1456-1460), que pertence ao Património Nacional e que está há 450 anos no Mosteiro de S. Lourenço do Escorial, o complexo que Filipe II (1527-1598) mandou construir e que é hoje um dos monumentos mais importantes de Espanha. Foi precisamente o restauro desta última, um processo difícil e moroso, que serviu de pretexto à nova exposição, despedida em grande de Gabriele Finaldi, o número dois do Prado, que a partir de Agosto será o novo director da National Gallery de Londres.
“Se olharmos para estas três obras, podemos dizer que estabelecem parâmetros de qualidade tão astronomicamente altos que não é justo, nem correcto, atribuir a Van der Weyden nada que seja ligeiramente diferente sequer”, diz Campbell, enquanto caminha pela exposição, defendendo que o facto de este trio estar reunido num mesmo espaço – algo que nem sequer o pintor terá visto – permitirá reavaliar outras pinturas e, nesse processo, reavaliar o génio do próprio artista. Um artista que parece ter-se especializado na representação da Paixão de Cristo e por quem este historiador se apaixonou – há palavras assim, com significados e dimensões bem diferentes – quando era ainda criança.
Foi com o pai, pintor, e a sua biblioteca de arte, “cheia de maravilhas”, que Campbell chegou a Van der Weyden: “Eu já tinha visto pinturas dele em livros e, ao perceberem o meu fascínio, os meus pais ofereceram-me um álbum que lhe era inteiramente dedicado quando eu tinha uns 11 ou 12 anos. O fascínio mantém-se até hoje. Uma escolha natural numa casa como a minha. É muito fácil apaixonarmo-nos por Rogier van der Weyden porque ele é simplesmente o melhor de todos os tempos.” Este especialista, curador da National Gallery (departamento de investigação) e autor de inúmeras publicações centradas na pintura flamenga e em Van der Weyden em particular, está consciente do exagero, mas longe de se preocupar com ele: “Quero voltar sempre, uma e outra vez, às suas pinturas. E este desejo é o que define a grande arte. Ninguém é mais sofisticado nem mais subtil neste jogo entre o real e o não-real do que Van der Weyden. Quando regresso a uma das suas obras descubro uma coisa nova e posso provar o que digo.”
Frente à Descida da Cruz, Campbell dá exemplos dessa revelação permanente na obra de Van der Weyden, apontando para uma pequena gota de sangue num dos mantos, vinda da mão esquerda de Cristo: “Nunca tinha reparado nela e já passei horas a olhar para esta pintura e para reproduções. Rogier [é assim, pelo nome próprio, que a ele se refere muitas vezes] está sempre a chamar-nos.”
À procura do erro
Esta obra que o artista pintou para uma capela de Lovaina que pertencia à guilda dos arqueiros, e que Filipe II (1527-1598) terá visto pela primeira vez em casa da sua tia, Maria da Hungria, trazendo-a depois para Espanha, pode ser vista como uma espécie de “glossário Van der Weyden”. Nela são evidentes os elementos que fazem do artista “um dos maiores entre os maiores”, defende o historiador. “Além do rigor técnico, das cores explosivas, sedutoras, da emoção poderosa, mas contida, há aqui uma inquietação que nasce de contradições – o tema está relacionado com a Paixão, como na maioria das obras desta exposição, mas é representado de forma pouco plausível. Há muita coisa errada, ou estranha, nesta cena.”
Campbell vai apontando para pormenores, dando visibilidade aos “erros”: o servo que ajuda a descer o corpo de Jesus tem uma mão a sobrepor-se à moldura, como se estivesse a sair do quadro; a escada a que subiu por vezes parece estar atrás da cruz, outras à frente; a Virgem, cuja pose ecoa a do seu filho morto, tem as pernas demasiado longas; as figuras amontoam-se num espaço impossível, “uma caixa demasiado pequena”… “Cristo é retirado de uma cruz onde nunca poderia ter estado porque simplesmente não caberia. Rogier trabalha todos estes elementos consciente do desconforto que eles causarão em quem vê. Podemos não os identificar à partida, podemos não conseguir nomear o que nos perturba, mas não podemos escapar a esta sensação de desassossego.”
Não é nas expressões que reside a tensão da Descida, diz, mas nos detalhes das vestes de Madalena ou de José de Arimateia, o rico comerciante que segura as pernas de Cristo e que, segundo os evangelhos, se juntou a Nicodemos, o fariseu que sustenta o seu tronco, para recuperar o corpo de Jesus e sepultá-lo. “Madalena não vem devidamente vestida – o véu da cabeça e o manto estão a cair, tal como ela, e a roupa que traz parece ser interior. José de Arimateia, de dourado, tem um colarinho que fecha com ganchos, de um lado e do outro, mas nenhum está preso. Os dois parecem ter-se vestido à pressa. Creio que para o observador contemporâneo a Rogier tudo isto seria imediatamente perceptível e, por isso, inquietante. Nós precisamos de um guia.”
Campbell é, com entusiasmo, esse guia, ainda que repita sem cessar que se sabe muito pouco sobre Van der Weyden, tudo porque os arquivos de Bruxelas, assim como as obras que fizera para a cidade (A Justiça de Trajano e Herkinbald), foram destruídos no bombardeamento francês de 1695, e nos de Tournai, em 1940.
O pintor mudou-se de Tournai, onde nasceu e usava o nome francês, Rogier de la Pasture, para Bruxelas, onde optou pelo flamengo e passou a ser Rogier van der Weyden, o homem que começou a pintar já perto dos 30 anos – naquela época, a maioria dos aprendizes era ainda adolescente – com Robert Campin (representado na exposição com Retrato de um Homem Forte) e que em 1432 tinha já o título de mestre.
O álbum português
Artista devoto, Van der Weyden foi pintor da cidade de Bruxelas e da corte ducal da Borgonha, uma das mais sofisticadas da Europa do século XV. A ligação aos duques, Filipe, o Bom, e Isabel de Portugal, a princesa filha de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, é feita logo no início da exposição, com um retrato (c.1450), um livro de desenhos (século XIX) e um volume iluminado da História de Roma (século XV).
Campbell acredita que no álbum de desenho do pintor português Domingos Sequeira (1768-1837) está o único registo conhecido de uma pintura de altar de Van der Weyden entretanto desaparecida, uma “obra importante” que teria sido encomendada por D. Isabel para a capela do fundador no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, mandado construir pelo seu pai. Uma capela que viria a transformar-se no panteão da dinastia de Avis. Os historiadores de arte portugueses ainda colocam algumas reservas à presença de uma obra do mestre flamengo na Batalha, mas o comissário da exposição madrilena é peremptório: “Sabemos que Isabel assina uma lista de itens a enviar para Lisboa em 1445 e é uma coincidência interessante que a encomenda de uma peça de altar para Castela a Van der Weyden [o Tríptico Miraflores] seja da mesma altura.”
A semelhança entre o retrato da duquesa da Borgonha com que a exposição abre – uma obra da oficina de Van der Weyden (c. 1450) que hoje pertence ao Museu J. Paul Getty de Los Angeles – e a figura feminina ajoelhada no esboço do referido painel da Batalha no álbum de Sequeira é outro dos pontos a favor da teoria de que o mosteiro português terá tido uma grande pintura do mestre flamengo. Esta obra seria uma Virgem com o Menino Jesus, ladeada por dois doadores – os duques da Borgonha – e o filho de ambos, Carlos, o Temerário.
“As semelhanças entre as duas mulheres são incríveis. Sequeira é obviamente um artista muito, muito talentoso, e por isso consegue, mesmo num desenho rápido, apanhar tudo de forma muito precisa.”
Van der Weyden era um dos pintores protegidos da princesa portuguesa, como Jan Van Eyck e Petrus Christus, sendo “natural” que seja ele o autor da pintura desaparecida. “Há muita coisa que permanece um mistério quando se trata de Rogier.”
Os seguidores
Este mistério que o rodeia é comum aos primitivos flamengos, que só começaram a despertar verdadeiro interesse entre a comunidade académica no século XIX, ainda que alguns deles tenham tido, como Van der Weyden, muito sucesso em vida.
Com as suas 20 obras de desenho, escultura, tapeçaria e sobretudo pintura, a exposição do Prado testemunha este sucesso e a forte influência que teve na arte do seu tempo e nos séculos seguintes, colocando o foco na Península Ibérica. Os seus modelos, diz José Juan Pérez Preciado, conservador de pintura flamenga do Museu do Prado e comissário executivo de Rogier van der Weyden, foram muitíssimo copiados por toda a Europa e “chegaram cedo” ao reinos peninsulares, mesmo que o artista nunca tenha estado em Portugal nem em Castela.
Para o atestar, os comissários requisitaram ao Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, o retrato de um Santo Franciscano (c. 1470) atribuído à oficina de Nuno Gonçalves, o autor dos Painéis de S. Vicente; pediram a Medina del Campo uma obra de Egas Cueman, escultor de Bruxelas instalado em Castela, que traduz para a escultura de Fay Lope de Barrientos o que Van der Weyden faz em pintura; e trouxeram do Metropolitan de Nova Iorque uma cópia de um dos painéis do Tríptico de Miraflores, encomendada ao flamengo Juan de Flandes pela rainha espanhola Isabel, a Católica. Mas também se valeram da colecção do próprio Prado, pondo ao lado de Virgem com Menino (conhecida como Virgem Durán), “uma obra atribuída a Van der Weyden por semelhanças estilísticas”, frisa Campbell, uma pintura de Maria amamentando o Menino Jesus do mestre de Don Álvaro de Luna; ou estabelecendo uma comparação directa entre o Tríptico dos Sete Sacramentos, do pintor flamengo, e o painel central do Tríptico da Redenção, atribuído ao mestre da Redenção do Prado.
“Um artista como Van der Weyden, com uma tão grande capacidade para transmitir imagens religiosas, seria muito apelativo para os reinos peninsulares, em que a religião e a igreja têm um peso tão grande”, explica Preciado, defendendo que o facto de obras como A Descida da Cruz e o Tríptico Miraflores terem estado em Espanha as pode ter salvado dos rigores da iconoclastia nos Países Baixos no final do século XVI, quando se destruíram muitas obras do mestre flamengo.
Este tríptico, lê-se no catálogo, centra-se na relação entre Cristo e a mãe, apontando para três momentos-chave, todos representados em cenários interiores: Maria adorando o Menino Jesus pousado sobre os seus joelhos, a Virgem segurando o corpo do filho morto e, no painel mais à direita, surpreendida por Cristo ressuscitado, quando os dois se reencontram na manhã de Páscoa.
Matemática e emoção
O Calvário, uma obra com quase três metros e meio de altura, também terá sido “salvo”. Foi feita para a Cartuxa de Scheut, perto de Bruxelas, mas esteve durante séculos junto à Descida da Cruz no Escorial. Nos últimos quatro anos instalou-se nas oficinas de restauro do Prado. Foram os técnicos da pinacoteca madrilena e do Património Nacional que lidaram com as cicatrizes que nele deixou o tempo.
A pintura que hoje atrai, num vermelho e num branco vibrantes, sobreviveu a uma queda séria e a um incêndio, e foi sujeita a intervenções várias (1567, 1892 e 1945) que tentaram, entre outras coisas, consolidar e endireitar o suporte em que foi executada. Algumas fizeram-lhe mais mal do que bem, explicam num vídeo da exposição os especialistas que lhe devolveram, garantem, o aspecto original. Quem diria que Maria e S. João estão vestidos de branco? Estava suja, gretada, escurecida, e o painel sobre o qual o mestre flamengo pintou, composto por 13 tábuas de carvalho do Báltico, arqueado. Eram inúmeros os repintes e as figuras aos pés da cruz, acinzentadas ou cor de pedra, tinham perdido volume. As suas expressões mantinham, no entanto, a tensão inicial, uma quietude estranha.
“O mais excitante de todo o restauro foi descobrir que Maria e S. João estão de branco, é tão simples como isto. Ninguém diria ao olhar para a pintura que aqui chegou”, diz Campbell, chamando a atenção para as três lágrimas de Cristo, que o visitante não consegue ver do chão. “É extraordinário que Cristo chore e que as duas figuras que lamentam a sua morte aos pés da cruz não estejam a chorar.” São três as lágrimas, como são três as ocasiões em que, na Bíblia, Jesus chora. “Tudo parece reduzido – e aqui ‘reduzido’ não é limitado – à sua essência, a uma simplicidade tremenda e maravilhosa.” Uma simplicidade que chega no fim da vida, já que esta é provavelmente a sua última pintura, “uma espécie de nunc dimittis”, resume o comissário escocês, evocando o cântico tradicional nas orações da noite, que é como uma despedida.
Para Preciado, O Calvário é também um “tratado matemático”, em que o artista mostra toda a sua habilidade na composição geométrica, com as linhas do fundo a apontarem sucessivamente para áreas importantes da pintura, criando uma “grelha de leitura” da obra. Uma grelha que reflecte, segundo Campbell, como Van der Weyden é capaz de usar a abstracção de forma muito clara. “S.João é uma figura de grande verticalidade, com linhas muito longas, estáveis. A Virgem é uma figura curvada, muito agitada, e nela todas as linhas estão quebradas. Rogier põe a matemática ao serviço da estrutura, mas também da emoção. Está sempre a calcular o efeito que determinado recurso, seja uma linha ou uma cor, pode ter em quem vê.”
“Obras como O Calvário provam que a pintura flamenga não é só habilidade técnica – que o é –, mas também reflexão intelectual. E uma reflexão poderosa”, conclui Preciado. Para o historiador Lorne Campbell, a originalidade de Rogier van der Weyden resume-se numa frase: “Ele pintava o que as coisas são e não apenas o que parecem.”
O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha e do Museu do Prado