A indiferença de Costa e a falta de diferença do PS
Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?
Um desses momentos reveladores aconteceu na semana passada com António Costa, quando lhe perguntaram o que tinha a dizer sobre a candidatura presidencial de Henrique Neto, militante e antigo deputado do PS, e quando, depois de algumas hesitações, acabou por dizer que a candidatura lhe era ”indiferente”.
A reacção de Costa, com a sua mal disfarçada irritação, percebe-se bem. Nesta fase, em que a questão da eleição presidencial é simultaneamente tão fundamental e tão prematura, em que o panorama político e o leque de candidatos é tão confuso tanto à esquerda como à direita, em que as presidenciais ameaçam transformar-se numa arena de primeiro plano da luta política não só entre o PS e o PSD, mas também entre as diversas forças de esquerda, em que o PS não encontra nas suas hostes (e deus sabe como procura) um candidato de jeito, em que receia perder ou ter um resultado pouco convincente com um candidato seu e em que receia tanto ou mais ganhar com um candidato que acabe por apoiar a contragosto, é natural que Costa gostasse de controlar um pouco mais os candidatos da sua área politica que entram no tabuleiro.
No entanto, a atitude de Costa, se se percebe bem, não pode deixar de cair muito mal mesmo a alguém que, como eu, nem se sente politicamente próximo de Neto, nem tenciona votar nele nas presidenciais.
Não é razoável que o secretário-geral do PS faça este tipo de comentários em relação seja a que candidato presidencial for, já que não pode ser indiferente para um líder politico saber quem está na corrida presidencial, e dizê-lo não pode deixar de ser considerado um gesto de despeito e uma manifestação de hipocrisia, para além de um sinal de desrespeito para com o processo eleitoral. Mas, se não é razoável que o comentário seja feito, não é sequer admissível que ele seja feito em relação a um militante do PS que, por acaso, até possui um currículo de actividade cívica particularmente respeitável.
Há, infelizmente, muitas pessoas no circuito dos partidos que poderiam justificar o menosprezo de Costa. Mas Henrique Neto não está nesse grupo e a arrogância de Costa fica-lhe mal. Ainda que Henrique Neto fosse um ilustre desconhecido, mandaria o mais leve verniz democrático que Costa saudasse a sua candidatura, lembrasse que as candidaturas presidenciais não passam pelos partidos e que um amplo confronto de pontos de vista só pode dignificar a eleição. (Fico com uma dúvida: se tivesse sido Miguel Relvas a apresentar a sua candidatura, Costa diria que tal candidatura não dignificava a democracia ou faria um salamaleque protocolar, em nome das relações interpartidárias?)
Há razões para Costa ter ficado irritado com a candidatura de Henrique Neto: antes de mais, o facto de ter percebido que será difícil encontrar melhor; depois, a saudável independência em relação ao aparelho do partido que o empresário sempre manifestou, o seu espírito crítico sobre o PS e a prática partidária em geral e o facto de Neto não ter procurado a sua bênção prévia. Mas Costa esquece-se de que a independência e espírito crítico que Neto exibe é algo que muitos portugueses gostariam de ver em Belém.
Depois de Costa, figuras do PS com o currículo e a autoridade moral de Augusto Santos Silva e José Lello vieram também tentar morder nas canelas de Henrique Neto: o primeiro para o classificar como um “bobo” que procura os seus 15 minutos de fama e o segundo para o considerar o “Beppe Grillo português”... Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?
Ou haverá algum rumo político que um dia vá emergir daquela amálgama? Algum pensamento que se consiga afirmar sem esperar pelo que o PSD tem a dizer e sem esperar pelo que a União Europeia queira autorizar?
A atitude de António Costa em relação a Henrique Neto alimenta as razões de descrença de muitos portugueses na política e nos políticos, reforçando a ideia de que os actuais partidos vêem a política como um couto que lhes está reservado e reagem com hostilidade a qualquer discurso crítico da sua actuação. O que é mais preocupante na reacção de Costa não é a sua indiferença, mas a sua falta de diferença.
É curioso verificar, nos comentários às notícias sobre Neto, como a honestidade e a frontalidade manifestadas pelo candidato ao longo da vida constituem as suas qualidades mais apreciadas — independentemente das propostas reais que venha agora a fazer. E como se receia, em relação a este e a outros candidatos que se perfilam, que eventuais acordos com os partidos possam ferir essa honestidade. Quando os partidos que controlam o sistema político são percebidos pelos cidadãos como os principais agentes corruptores da política, algo está podre. E quando esses partidos nem percebem isso, é urgente encontrar-lhes alternativas.
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