Mar revolto
Foi um processo turbulento o que conduziu a estes diplomas, onde, associado a uma falta de participação da comunidade científica e da sociedade em geral, por opção governativa, se juntou um ignorar dos consensos técnicos que se geraram, autonomamente, através de encontros produzidos por diversos especialistas das áreas do direito, políticas públicas, ordenamento, biologia marinha, conservação da natureza, pescas, etc., e ainda a não contemplação de legítimas preocupações constitucionais das regiões autónomas com falhas a nível da gestão partilhada do mar português. Culminou agora com a quebra de um compromisso de que este diploma voltaria ao Parlamento para discussão e consensualização final.
Existem diversos aspectos técnicos que foram debatidos, discutidos e analisados e sobre os quais foi disponibilizado um relatório detalhado dos problemas identificados, bem como um conjunto de soluções possíveis para ultrapassar essas deficiências na lei. Não sendo útil entrar nesses detalhes no contexto deste breve texto, não parece no entanto possível, como cidadão, encontrar foros de normalidade num processo onde se invertem claramente diversos aspectos do interesse público para os quais penso ser importante chamar a atenção.
Do ponto de vista político, percebe-se a pressa em “mostrar serviço” face às enormes expectativas que cedo se criaram sobre o valor potencial do mar para o PIB português, valor esse que tarda em ser concretizado em negócios concretos e onde o aproximar de eleições clama por “resultados”. Não retirando mérito ao destaque dado ao mar nos últimos anos e a diversas decisões correctas neste domínio, é no entanto com alguma perplexidade que se assiste a este “deitar tudo a perder” com a publicação apressada dos diplomas em causa.
Ao não se cuidar de corrigir as deficiências centrais destas leis, aumenta-se grandemente a insegurança jurídica e política das mesmas, o que não pode nunca favorecer um ambiente de investimento e desenvolvimento para o mar de que o país tanto precisa. Ignora-se, igualmente, que os resultados neste domínio serão sempre matéria de investimentos continuados de várias legislaturas, não compatíveis com visões imediatistas e de curto prazo.
Listando alguns dos tópicos principais que necessitarão obviamente de rectificação assim que houver condições governativas para isso, foram identificados os seguintes aspectos:
1. A gestão partilhada do mar português com as regiões autónomas é um bem a preservar que não se encontra devidamente contemplado nestes diplomas, o que se comprova pelas reacções já tornadas públicas.
2. A lei do ordenamento traduz-se meramente num regime de licenciamento, ignorando uma visão de futuro assente no desenvolvimento sustentável.
3. As actividades mais lucrativas como a exploração de petróleo, gás ou minerais estarão isentas de pagamentos de taxas, não tendo sido sequer aceite a criação de um fundo de investimento, investigação e desenvolvimento para o mar alimentado com as mais-valias das actividades a licenciar.
4. É criado um mecanismo de “um país, dois sistemas” não existindo integração, mas antes subordinação, dos instrumentos de ordenamento costeiro e terrestre face ao ordenamento do mar.
5. As actividades de exploração podem ser isentas de avaliação ambiental, o que abre a porta a um regime pouco responsável de exploração.
6. Podem ser revogadas normas de protecção ambiental e conservação da natureza com a mera aprovação do licenciamento de actividades de exploração. Ou seja, os interesses privados de exploração não respondem perante o interesse geral, por exemplo, de preservação do ambiente ou de exploração de recursos (pescas).
7. São criados prazos de resposta totalmente irrealistas para a administração pública se pronunciar sobre projectos, dando a ausência de resposta aprovação tácita dos mesmos. Por muito favorável que todos sejamos a respostas céleres, as mesmas não podem comprometer a seriedade e responsabilidade associadas ao licenciamento de bens públicos.
O presente regime de facilitação de negócios no mar às custas do interesse público, da sustentabilidade das actividades, da reputação de Portugal como país responsável e que assenta as suas políticas no desenvolvimento sustentável, só pode encontrar justificação numa apressada tentativa de mostrar resultados políticos ou, no pior dos cenários, numa tentativa de concretização de negócios, por exemplo na exploração de minerais, sobre os quais nada se sabe.
É pena que este processo termine assim! O mar não precisa de partidarização e o país não o aproveitará sem políticas estáveis, de longo termo e consensuais nos seus aspetos fundamentais... Infelizmente, todos estes objectivos estão agora comprometidos.
Biólogo e professor no ISPA-Instituto Universitário