Instituto já leva mais de dois anos a decidir se gays podem dar sangue

Grupo de trabalho criado em 2012 para estudar a dádiva de sangue por homo e bissexuais não se reuniu uma única vez em 2014 e nomes dos peritos estão em segredo. Esta sexta-feira assinala-se o Dia Nacional do Dador.

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Hoje assinala-se o Dia Nacional do Dador. A polémica com os homossexuais prossegue Adriano Miranda

O secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde diz que a deliberação que criou o grupo de trabalho não estabelece prazos para apresentação de conclusões. “Não havendo prazo, não há atraso”, afirma Fernando Leal da Costa. Mas Luís Vitório, chefe de gabinete de Paulo Macedo, chegou a estabelecer um prazo numa resposta por escrito enviada ao grupo parlamentar do Bloco de Esquerda em Dezembro de 2012 onde refere que aguardava por conclusões “seis após a primeira reunião”.

O PÚBLICO pediu ao IPST – organismo tutelado pelo Ministério da Saúde e responsável pela coordenação nacional da colheita de sangue – os nomes dos peritos que fazem parte daquele grupo de trabalho. “Não posso dizer quem faz parte, porque teria de pedir autorização às pessoas”, responde a médica Gracinda de Sousa, da direcção do IPST. “É uma questão ética de responsabilidade em relação a essa informação”, justifica.

A mesma responsável diz que o grupo é constituído por 12 pessoas. Em 2014 não houve uma única reunião, mas os membros do grupo receberam artigos científicos enviados pelo IPST via correio electrónico.

Entre outros aspectos, o grupo de trabalho tem como missão oficial perceber se há fundamento científico para a actual exclusão de homo e bissexuais masculinos da dádiva de sangue, exclusão que vigora há décadas em vários países por se entender que naquela população há maior prevalência e incidência de VIH/sida e outras infecções sexualmente transmissíveis.

Orientação sexual ou comportamentos de risco?
Sectores do activismo gay defendem que a exclusão não se pode basear na orientação sexual dos dadores, mas sim nos comportamentos de risco que estes adoptem.

A associação de defesa de direitos das minorias sexuais ILGA Portugal tem tido reuniões com o IPST, uma das quais em Agosto do ano passado. Nessa ocasião foi informada de que o grupo de trabalho iria apresentar resultados até Dezembro de 2014, o que não aconteceu. Quanto à  identidade dos peritos, também ficou por saber. “Essa informação nunca foi partilhada connosco”, afirma Paulo Côrte-Real, vice-presidente da ILGA.

O Ministério da Saúde chegou divulgar, em Dezembro de 2012, a longa lista de instituições a que pertencem os membros do grupo de trabalho. “Peritos da Direcção-Geral da Saúde, do IPST, de serviços de sangue hospitalares, de clínica de doenças infecciosas, de epidemiologia, de virologia, da Comissão para a Cidadania e Igualdade  de Género, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e de associações de doentes”, lê-se num documento publicado em 2013 no site do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda (BE).

Desde então, o BE deixou cair o tema, mas ao que explica agora José Soeiro, que acompanha esta matéria, o partido “está a ponderar tomar uma iniciativa sobre o assunto, possivelmente através de um novo projecto de resolução” na Assembleia da República. O deputado bloquista classifica o grupo de trabalho do IPST como “absolutamente inútil, porque não produziu resultados”, e diz que “parece ter sido uma manobra dilatória para não se tomar qualquer acção concreta”.

Gracinda de Sousa assegura que deste grupo de trabalho “vai sair um parecer técnico a apresentar à tutela” que “poderá ser determinante para uma nova fase”, ou seja, o eventual fim da exclusão tal como ela existe. A médica considera que mais de dois anos para apresentação de conclusões “não é muito tempo neste tipo de assuntos”. “Custa-me dar um prazo neste momento, no passado caímos na tentação de dar prazos”, diz.

Noutro sentido, o secretário de Estado adjunto de Paulo Macedo admite a hipótese de as conclusões do grupo nunca virem a ser conhecidas: “O grupo de trabalho dará conta das suas conclusões ao conselho directivo do IPST, que depois decidirá se, como, quando e onde as apresentará”, revela Fernando Leal da Costa.

Neste momento, os hospitais e serviços responsáveis pela colheita de sangue em Portugal aplicam critérios discricionários na selecção de dadores. Um questionário-padrão de triagem está em vigor desde Janeiro de 2013, de acordo com o IPST. Nele se questiona o potencial dador sobre se “nos últimos seis meses teve novo parceiro sexual” ou se “nos últimos 12 meses teve parceiro sexual com sida ou seropositivo para o VIH, hepatite B, C e sífilis”. São 28 perguntas ao todo que versam o estado geral de saúde: transplantes, vacinas, casos de gripe, febre, consumo de drogas, etc.

Deixou de constar a pergunta “sendo homem, teve contactos sexuais com homens?”, cuja existência tinha levado o BE a apresentar em 2010 um projecto de resolução, aprovado pela Assembleia da República sem votos contra, no qual se pedia ao Ministério da Saúde para acabar com a "discriminação dos homossexuais e bissexuais nos serviços de recolha de sangue”. Essa mesma pergunta continua, porém, a ser feita oficiosamente.

“Algumas pessoas dos serviços de sangue fazem a pergunta verbalmente quando falam com os dadores sobre comportamentos sexuais de risco”, assume Gracinda de Sousa. O questionário de 2013 “não é vinculativo, porque cada hospital tem o seu conselho de administração, não depende do IPST, nem sequer da Direcção-Geral da Saúde”, justifica.

Um estudante de Lisboa, de 21 anos, que prefere não ser identificado, conta ao PÚBLICO que ao tentar dar sangue em Abril do ano passado foi questionado verbalmente por uma enfermeira sobre se "alguma vez na vida tinha tido relações sexuais com outro homem". O episódio passou-se no Centro Regional de Sangue de Lisboa. "Já tinha dado sangue naquele sítio duas ou três vezes e nunca me tinham perguntado nada semelhante", relata o estudante. "A enfermeira disse claramente que a pergunta fazia parte das directrizes do serviço", assegura. "Senti-me discriminado e ofendido."

O jovem preencheu o livro de reclamações e acabou por receber uma resposta do IPST na qual se lê que os dadores "não são suspensos pela homossexualidade, enquanto orientação sexual em si mesma, mas pelas práticas sexuais efectivas". O estudante garante, no entanto, que na triagem não lhe perguntaram nada sobre práticas sexuais, mas sim sobre a sua orientação sexual. Em Outubro de 2014, ao tentar dar sangue numa unidade móvel na Universidade Nova de Lisboa não passou da secretaria: o sistema informático apresentou-o como excluído, com data de Abril.

Esta é uma das "várias queixas" que o vice-presidente da ILGA garante continuar a receber. No entender da associação, existe a “necessidade de eliminar de forma sistemática” a referida pergunta.

Parte da argumentação recente da ILGA baseia-se no parecer do jurista Paolo Mengozzi, do Tribunal de Justiça da União Europeia, emitido em Julho do ano passado a propósito da queixa de um cidadão francês contra o Ministério da Saúde de França por alegada exclusão na dádiva de sangue, alegando as autoridades que os homossexuais não podem ser dadores por estarem mais expostos a infecções sexualmente transmissíveis. Paolo Mengozzi entendeu ser “demasiado genérica” a formulação de regras que presumem que contactos sexuais entre homens são uma forma de exposição às infecções e diz que a legislação francesa está a fazer uma “discriminação indirecta” com base no género e na orientação sexual. 

Gracinda de Sousa responde que “o argumento da ILGA é muito válido”, mas contrapõe: “O IPST não tem nada a ver com a orientação sexual das pessoas, temos a ver com as práticas que podem ter impacto sobre a qualidade e a segurança do sangue.” Fernando Leal da Costa, que além de secretário de estado adjunto é especialista em hematologia clínica, entende que a “disparidade de procedimentos” em cada serviço de colheita de sangue “quase inviabiliza uma adequada avaliação do risco de mudar de critério.”

Portugal não está sozinho
Portugal não está isolado na exclusão tácita ou explícita de homo e bissexuais – “homens que fazem sexo com homens”, ou HSH, na designação dos epidemiologistas. Mantém-se em vigor, a título de exemplo, uma recomendação de 1983 do Conselho da Europa, segundo a qual “deve ser evitada tanto quanto possível a dádiva por pessoas de grupos de risco”. Os HSH são um desses grupos de risco, diz o documento. Vigora também a directiva da Comissão Europeia de Março de 2004 que impõe a “suspensão definitiva” de “indivíduos cujo comportamento sexual os coloque em grande risco de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue”. Ainda assim, nenhum dos documentos impõe o tipo de perguntas que devem ser feitas em inquéritos ou entrevistas de triagem dos serviços de colheita de sangue.

Nos EUA, os HSH estão proibidos de dar sangue desde 1977, quando surgiram os primeiros casos da infecção a que mais tarde se chamou sida. A autoridade de saúde norte-americana, Food and Drug Administration, anunciou há cerca de três meses que vai alterar as regras ao longo de 2015. A suspensão deverá passar de definitiva a temporária: poderá dar sangue quem tenha tido “o último contacto sexual” há pelo menos 12 meses. É a mesma regra que o Reino Unido adoptou em 2011.

Questionado sobre este tema, Luís Mendão, um dos mais antigos activistas portugueses na área da sida e presidente do GAT (Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/sida), entende que “dar sangue não é um direito, quem recebe o sangue é que tem direito a sangue seguro”. No entanto, no dizer de Luís Mendão, se alguém é eliminado com “com base em motivos que não sejam objectivos ou que envolvam um pensamento de discriminação sobre um grupo, então temos um problema”.

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