BE diz que Câmara de Lisboa favoreceu Espírito Santo Saúde e Grupo Mello
Com a renúncia de Ana Drago e o afastamento temporário de Mariana Mortágua, o engenheiro civil Ricardo Robles tornou-se o cabeça de cartaz do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal de Lisboa, onde tem conquistado protagonismo e gerado incómodo.
Assinala-se agora o primeiro ano da reforma administrativa de Lisboa. Que balanço faz?
A reforma administrativa é um processo que se impunha há muitos anos, a cidade precisava de uma descentralização que permitisse a aproximação às pessoas. Sempre que nos candidatámos a Lisboa, desde o tempo do Miguel Portas, tivemos propostas de reforma administrativa. Não era exactamente este modelo, era um modelo mais de distritos urbanos. Quanto ao balanço que fazemos, é evidente que houve muitas melhorias. Não fazia sentido um passeio estar destruído ou por arranjar meses quando havia um órgão mais próximo, que era a freguesia, que podia resolver isso. A crítica que fazemos é à forma como os trabalhadores foram envolvidos. Esta reforma foi muito agressiva com os trabalhadores, não os envolveu como devia ter envolvido.
Está convencido de que tem aumentado a precariedade na câmara?
O Bloco tem insistido muito com a questão da precariedade na assembleia municipal e tem sido um dos motivos que têm criado maior crispação com António Costa. E nós percebemos porquê. É uma vergonha que na cidade ainda haja relações com os trabalhadores do município que são, como foi classificado por Helena Roseta, de escravatura moderna, como é o exemplo dos contratos emprego inserção. São trabalhadores recrutados à força, nos centros de emprego, que trabalham por 83 euros e que têm as mesmas funções que os outros trabalhadores, têm um horário e uma hierarquia.
A câmara não devia recorrer a esse mecanismo?
Não. Aliás nós já constatámos que a câmara faltou à verdade quando a confrontámos com isto. Entregámos um requerimento em Julho do ano passado que ainda não foi respondido, mas em diversas interpelações em plenário tanto o presidente como o vice-presidente deram-nos informações erradas.
Em relação ao número de trabalhadores nessas condições?
Sim. Em Janeiro de 2014, o presidente disse-nos que eram à volta de 100 e na realidade eram 160, disse-nos o IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional]. E em Novembro de 2014 o vice-presidente voltou a dar dados errados, dizendo-nos que eram 22, quando eram 56. Nós achamos que são muitos. Mas mesmo que fosse só um, o que mais ressalta deste problema, que é uma vergonha para a cidade e para o município, é a forma como o presidente interpreta esta questão. Ele olha para os contratos emprego inserção como uma oportunidade para os desempregados, uma forma de eles terem uma remuneração e poderem estar em melhores condições para se candidatarem no futuro.
E não é verdade?
Não. Há 55 mil contratos emprego inserção no país e não há registo de que algum fique. São fornadas que são sucessivamente renovadas e ninguém fica. Achamos que envergonha o município haver trabalhadores com este regime.
O BE foi muito crítico da venda em hasta pública do triângulo dourado, em Alcântara, e do terreno junto ao Hospital da Luz. Porquê?
Olhamos para a política de urbanismo deste executivo e vemos que há, desde a revisão do Plano Director Municipal, uma preocupação mal orientada para a rentabilidade de quem quer investir no imobiliário. No caso do triângulo dourado e do Hospital da Luz, é um bocadinho esse paradigma: os planos de pormenor e os planos de urbanização são adaptados de forma a corresponderem às expectativas dos interessados nesses terrenos. Nós achamos que o urbanismo deve ser feito a pensar na cidade, nas pessoas. Naturalmente tem que ter em conta quem vai investir, mas não pode ser orientado para esses.
Os planos foram alterados a pensar nas manifestações de interesse que tinha havido?
Sim, a história desse Plano de Pormenor do Eixo Urbano Luz Benfica e do Plano de Urbanização de Alcântara é essa. São investidores imobiliários, em ambos os casos ligados ao sector da saúde, a Espirito Santo Saúde e o Grupo Mello, que começam por manifestar interesse num determinado lote, registam esse interesse junto da câmara, a câmara procede à revisão dos instrumentos de gestão territorial que regem a utilização desse espaço para os adaptar às ambições desses grupos, aprova-os, depois cria uma hasta pública para vender esses terrenos e em ambos os casos aparece um único comprador que compra pelo valor de um euro acima da base de licitação. Achamos que isto não é de todo transparente, que não é razoável construir-se e pensar-se a cidade em função destes interesses.
A câmara favoreceu essas duas entidades?
Sim, o BE tem a convicção de que estas revisões de planos de pormenor e de planos de urbanização foram feitas para isso, porque o resultado foi esse. E portanto há um favorecimento.
O Bloco perguntou à câmara se há um procedimento que os serviços municipais devam seguir quando há uma manifestação de interesse num terreno. A não haver, é uma porta aberta à corrupção?
Sim. Uma das críticas que fazemos a este executivo é que tem pugnado pouco pela transparência. O BE tem insistido muito com requerimentos para poder ter acesso a documentação e muitos deles têm mais de um ano e ainda não foram respondidos. Achamos que uma câmara que se quer democrática e transparente tem que criar mecanismos em que a informação esteja disponível para poder ser escrutinada.
Apresentaram também uma recomendação para que essas manifestações de interesse passassem a ser publicamente divulgadas, Isso ia contribuir para acabar com a falta de transparência?
Sim. Sabemos que é no urbanismo que são feitos os grandes negócios e portanto quanto maior for o escrutínio, quando maior for a transparência, a clareza sobre quem são os interessados e quem são os concorrentes, maior é a facilidade de poder controlar eventuais processos de corrupção, ou de favorecimento de alguns dos concorrentes.
Neste mandato, mais de metade dos requerimentos da assembleia não tiveram resposta e muitas respostas chegam fora do prazo. É mais uma vez uma questão de falta de transparência?
Este mandato está a ser marcado na assembleia municipal por um elevado ritmo de trabalhos mas também por um esforço para que a fiscalização do executivo seja de grande intensidade e de grande eficiência. E de alguma forma esta pressão exercida sobre a câmara tem criado algumas situações desconfortáveis. Relembro a questão da Colina de Santana, que foi uma iniciativa da assembleia municipal para que um processo que estava fechado dentro da câmara pudesse ser discutido pela cidade. E foi uma derrota enorme do executivo que um projecto de especulação imobiliária gigantesco, de 16 hectares no coração de Lisboa, tivesse sido bloqueado e parado pela assembleia municipal.
No relatório sobre o primeiro ano de actividade da assembleia municipal neste mandato constata-se que o BE é uma das forças políticas com maior percentagem de reprovação das propostas. Helena Roseta atribuiu isso ao facto de elas terem uma forte carga política. Revê-se nessa leitura?
Somos o grupo municipal que mais propostas apresentou. Também é verdade que muitas delas são chumbadas. Mas nós achamos que a assembleia municipal é um órgão político, que deve fazer propostas e recomendações políticas, sobre política da cidade, que interessa aos lisboetas. E por isso insistimos nisso, mesmo que às vezes haja desconforto por parte de outras forças políticas. Temos a responsabilidade perante quem nos elegeu de tomarmos posições que às vezes vão para além da mera gestão quotidiana do município.
E o debate que a assembleia municipal promoveu sobre os transportes, foi importante?
Os próximos meses vão ser fundamentais para perceber o que vai acontecer. Esse vai ser um grande teste a António Costa. Achamos que a estratégia que ele está a seguir é profundamente errada.
Porquê?
Porque a única exigência que faz é ser tratado de igual forma que os outros concorrentes, coisa com a qual o secretário de Estado dos Transportes tem concordado e tem dito que essa é a única condição que consegue garantir. Estão os dois sintonizados desse ponto de vista. Mas o erro estratégico de António Costa é que ele não pode posicionar-se ao lado dos outros concorrentes, por duas razões. A primeira é porque existem direitos históricos de Lisboa sobre estas empresas de transportes e que devem ser salvaguardados a todo o custo. E a segunda é porque não há outra entidade que possa gerir os transportes públicos tão bem como o município. E portanto não pode estar em condições de igualdade. Tem-nos dito o presidente da câmara que se não lhe for entregue esta subconcessão irá depois protestar e fazer valer os seus direitos.
Há quem interprete essas declarações como chantagem.
Certo, mas não vale a pena depois de a asneira estar feita vir reclamar. É preciso exigir essa posição preferencial para o município, porque só uma gestão municipal pode ser garantia de transportes públicos universais para a cidade.
Como é que vê o anunciado lançamento de um concurso, até atendendo às circunstâncias políticas?
É um descaramento violento da parte do governo nos últimos meses do seu mandato estar a fazer uma alteração tão profunda num serviço público essencial na cidade. Porque lançado o concurso em Março, ele será fechado em princípio em Junho. Estaremos em pré-campanha eleitoral para as próximas legislativas e portanto é de uma agressividade de privatização. O Governo devia ter pudor em avançar.
Como é que olha para o caso da isenção de taxas ao Benfica? Houve uma tentativa de desresponsabilização da câmara?
O executivo de António Costa não só neste mandato como nos anteriores tem-se caracterizado por várias isenções, que num período de carência de receitas fazem muita diferença. Relembro os grandes eventos na cidade de Lisboa, o Rock in Rio, as regatas no rio Tejo, que representam vários milhões de euros, que muita falta fazem ao município. Mas agora vemos um tratamento preferencial para um clube de futebol, que é totalmente inadmissível, do ponto de vista político e até do ponto de vista técnico. Os serviços da câmara pronunciaram-se contra esta isenção, e o executivo não podia ter assobiado para o lado e remetido essa responsabilidade para a assembleia municipal.
A câmara devia ter rejeitado a pretensão do Benfica?
Devia ter seguido as indicações dos serviços e não fazer uma jogada política de responsabilização da assembleia municipal.
Como é que vê o papel que a presidente da assembleia municipal tem assumido neste caso?
A presidente da assembleia municipal tem tido várias posições neste mandato que por vezes confrontam o executivo, em particular ao nível do urbanismo. Por exemplo na questão da Colina de Santana, em que foi uma das principais promotoras da oposição que se gerou na cidade contra o processo de especulação imobiliária. Também nesta questão das isenções de taxas tomou uma posição muito clara.
Outro negócio que o BE criticou foi o da concessão a um privado de um conjunto de espaços em Monsanto. Porquê?
A concessão da Casa do Presidente e de outras casas dentro do parque de Monsanto é mais um dos negócios escandalosos que este executivo tem levado a cabo. Será entregue por 25 anos, com mais 30 de opção, uma série de infra-estruturas dentro do parque e o concessionário paga mil euros por mês nos primeiros três anos de actividade, com uma unidade hoteleira com 55 quartos, e depois passa a pagar 2600 euros.
São valores demasiado baixos?
São valores absurdos, que não fazem sentido. É escandaloso e absolutamente lesivo para a cidade um negócio deste tipo.
António Costa já devia ter saído da câmara?
O BE não tem nenhuma posição fechada sobre isso, achamos que deve ser o próprio a tomar essa decisão. Já houve casos na história do município em que houve uma sobreposição das funções de presidente da Câmara de Lisboa e de líder de um partido.
E não nota que o trabalho na câmara esteja a ser prejudicado pela acumulação de cargos?
A cidade é prejudicada muitas vezes por uma posição bastante presente do presidente.
António Costa tem dito que quer estender ao país a política anti-crise que concretizou na cidade. Mas quando foi discutido o último orçamento, o Bloco dizia que a resposta social à crise em Lisboa estava a falhar.
Têm sido feitas algumas coisas mas a dimensão da crise na cidade precisa de muito mais recursos do que aqueles que estão a ser aplicados. Desse ponto de vista, achamos que o executivo não tem assumido os meios para dar uma resposta eficiente à crise. Aliás, o fundo de emergência social não tem sido aplicado na sua totalidade e portanto existe uma incapacidade de aplicar na realidade o pouco que está a ser consignado a este combate.
Como é que vê a possibilidade de Fernando Medina assumir a presidência da câmara?
Achamos que o peso político de António Costa não se compara ao de Fernando Medina, mas a nós interessa-nos sobretudo a definição de políticas e a execução dessas políticas. Não tanto o intérprete, mas sim a política que será praticada com a eventual saída de António Costa.
E essa não é de esperar que varie?
Julgamos que não. O PS tem tido uma coerência na aplicação do seu programa e portanto prevemos que se vá manter.
Quais é que têm sido os grandes problemas dessa política?
A política de urbanismo marca com certeza este mandato e é um dos principais problemas na gestão do executivo. E a questão da transparência. António Costa teria todas as condições para criar uma câmara municipal com maior transparência, que permitisse uma democracia com mais intensidade e maior escrutínio da sua execução e não o tem feito. Mas sobretudo a questão da resposta à crise social, que tem sido manifestamente insuficiente.
Outra área em que há pouco tempo o BE disse que o trabalho feito tem sido insuficiente é a da habitação.
Lisboa perdeu centenas de milhares de habitantes nas últimas décadas e é preciso inverter esse curso. Têm sido tomadas algumas medidas mas que são uma gota de água no oceano. Mas sobretudo achamos que o problema da habitação cruza-se com a política do urbanismo. Este executivo aposta numa política de reabilitação urbana concentrada na zona histórica, destinada ao investimento no turismo. E não é possível repovoar o centro de Lisboa quando a esmagadora maioria das intervenções de reabilitação urbana é para hotéis, e sobretudo para hotéis de gama alta. É preciso inverter esta lógica. O BE tem feito sempre uma proposta, e no último programa também o fez, de que nas intervenções de reabilitação urbana haja uma quota de 25% de habitação a custos controlados.
A cidade tem sido planeada a pensar nos turistas?
O turismo é importantíssimo para a cidade. É um gerador de receita importante e é importante que a cidade saiba receber bem os turistas. Mas o problema deste executivo municipal é que só olha para essa vertente e portanto nós temos um centro que está a ficar descaracterizado. Não existem pessoas a viver na Baixa, no Rossio, na Praça da Figueira. Existem hotéis apenas. A médio prazo isto pode ter custos elevados para o próprio turismo porque uma cidade que fica descaracterizada é uma cidade montra.
E a taxa turística, faz sentido?
O BE teve uma proposta que se diferenciava da proposta de António Costa. Não faz sentido que o jovem que dorme no hostel por 10 ou 15 euros por noite pague o mesmo do que quem dorme no Ritz por 150 ou por 200 euros. É injusto e é abusivo.
Devia haver uma diferenciação?
Com certeza. E a taxa de cobrança no Aeroporto é absolutamente absurda. A própria ANA diz que terá muitas dificuldades em pô-la em prática e é uma espécie de portagem a quem aterra em Lisboa, que não faz sentido nenhum.
Como é que vê as críticas que têm sido feitas por António Costa dizendo que o Bloco é alérgico a assumir responsabilidades?
O BE foi o grupo municipal que apresentou mais propostas. Para além disso quando discutimos o orçamento no final do ano passado com o vice-presidente levámos propostas escritas. Nós queremos assumir as nossas responsabilidades em Lisboa e temos propostas e queremos lutar por elas e que elas sejam implementadas. Naturalmente não temos nenhum medo do poder, queremos é que esse poder sirva para que as melhores propostas vinguem. Damos prioridade às propostas e não ao poder.