Depois de Antonio Tabucchi morrer, em 25 de Março de 2012, a sua mulher, Maria José Lancastre, foi descobrindo cadernos. Cadernos atrás de cadernos, mais de uma centena. “De vez em quando, ainda encontro um”, afirma. Cadernos com rascunhos mas onde estava já uma versão quase final — “ele dizia que escrevia na cabeça”. E, no caso dos contos, Tabucchi comportava-se como um fonâmbulo. “Era como um equilibrista que tinha de atravessar uma corda entre uma janela e outra. Dizia que um conto era como um soneto, tinha um equilíbrio seu e tinha de ser percorrido logo. Um romance podia ser interrompido.” Vamos então supor que Antonio Tabucchi escreveu de um só fôlego a história que hoje publicamos.
O conto foi descoberto em Novembro passado. Durante uma viagem de avião para Itália, Maria José Lancastre começou a transcrevê-lo. “Fiquei presa no texto”, conta. A caligrafia estava difícil de decifrar, outras tarefas vieram interpor-se, mas agora ficou pronto — pronto com a sua própria suspensão porque nunca foi terminado. O episódio que o originou foi contado ao escritor algures antes do Verão de 2011. “Muitas pessoas contavam-lhe histórias e diziam-lhe: ‘Isto é um conto para ti.’ Muitas vezes não resultava.” Desta vez resultou e o conto começou a formar-se. A revista italiana Internazionale vai publicá-lo também. Será editado nos Estados Unidos depois de traduzido.
Acompanhamos a história com as fotografias que o próprio Antonio Tabucchi tirou em 1967, próximo da época em que ela se passa. O escritor italiano que se apaixonou por Fernando Pessoa, por Portugal e por uma portuguesa (conheceu a mulher e mãe dos seus dois filhos em 1966, um ano depois da sua primeira visita ao país), não era um fotógrafo compulsivo, mas “gostava muito de fotografar, de fixar a realidade”. Os seus retratos foram tirados pelo filho, Michele Tabucchi. E o caderno que aqui vemos é o do manuscrito do texto.
Maria José Lancastre explica como Antonio Tabucchi chegou ao conto que termina com o artigo “o”:
Este texto foi escrito em 2011. Teria sido certamente aperfeiçoado e, sobretudo, completado se o destino não se tivesse posto de permeio.
O episódio que inspirou Antonio Tabucchi foi-lhe contado por uma amiga, Helena Abreu, que o viveu pessoalmente quando andava na Faculdade de Letras de Lisboa e participava nas “excursões dialectais”, organizadas no fim dos anos 60 pelo professor de Linguística Portuguesa Luís-Filipe Lindley Cintra, o professor do conto. Os factos de que se fala tiveram lugar em Trás-os-Montes, numa aldeia do concelho de Chaves.
Nessa ocasião, enquanto o grupo chefiado pelo professor interrogava ao pé da sacristia uma velha mulher (parece que o professor estava aborrecido, pois que quase só lhe tinham trazido velhas desdentadas, o que poderia interferir com a pronúncia verdadeira dos vocábulos escolhidos para o teste linguístico), começaram a ouvir-se gritos terríveis na aldeia — gritos de mulheres desesperadas, agudos, quase inumanos, num coro de tragédia grega, gritos que feriam como ferro em brasa. Cedo se soube que a causa fora a chegada de um telegrama a comunicar a morte na guerra em África de um jovem da aldeia. Do grupo de Lisboa, houve quem ficasse petrificado e quem desatasse a soluçar. Aquela tinha sido uma das experiências mais fortes das suas vidas.
A velha era a avó do rapaz morto e, apesar da notícia, continuou a soletrar palavras para dentro do gravador.
A tradução é minha.
Maria José Lancastre
O conto inacabado
1. E finalmente Setembro chegou. Naquela época as aulas acabavam em Julho, o tórrido mês de Agosto era para a villegiatura, o Algarve não existia, quer dizer, existia geograficamente, mas ninguém lá ia, e aliás quem é que podia lá ir?, para lá chegar tinha de se passar o Tejo com o carro no barco, depois percorrer o Alentejo até encontrar uns caminhos perdidos que atravessavam a serra de Monchique, e então é que se chegava às praias do Algarve, lindas, onde não havia nada nem ninguém, uma ou outra aldeia de pescadores, umas cabanas de folhagem, desgarradas naqueles areais, os camponeses vendiam melões, figos e melancias, havia uns hippies vindos de Inglaterra, uns rapagões feios que dormiam em tendas e que giravam para fugir à Guarda Nacional Republicana, procuravam o paradise now e achavam que o tinham encontrado ali, por entre aquelas dunas agrestes. Não me lembro bem se estávamos em 1970 ou 71, mas tanto faz, eram esses anos, quando todos pensavam que o salazarismo não acabaria nunca, que iria durar para sempre.
Naqueles tempos ia-se para a Praia Grande. Sabes qual é, agora mudou muito, toda a gente a conhece. Mas naquela altura, era a boa burguesia de Lisboa que para lá ia, e ali, naquela praia enorme mas quase vazia de gente, travavam-se os conflitos que nos parecem saídos de um filme americano, tipo Summer Place, tenho de recorrer ao cinema americano, é pena que o nosso cinema não os tenha representado: entre as famílias a favor do regime e as que se opunham. Mas todos da mesma classe, sei que me entendes, porque conheceste um pouco aquela sociedade, à tarde encontrávamo-nos no café, ou então à beira da piscina do grande hotel, como se estivéssemos em família, porque estávamos em família, aliás, e engalfinhávamo-nos, mas com elegância, sem nunca passar as medidas. E a questão era África. África Nossa? Assim o queria o regime e a sua propaganda. Ou África dos africanos? África no sentido das nossas colónias, chamadas Ultramar, como então se devia dizer, agora apercebo-me que nunca chamei África pelo nome, disse sempre Ultramar, não te dá vontade de rir? A mim hoje parece-me cómico. Falava-se do Ultramar à beira da piscina daquele hotel moderníssimo, onde no entanto nenhuma das famílias se alojava, porque era caro demais, era só para estrangeiros. Nós tínhamos as nossas vivendas de férias, com jardim e uma buganvília, víamos a relva do vizinho e à tardinha discutíamos acerca do Ultramar, contemplando, da varanda do hotel, o pôr do sol sobre um oceano ameno que, sabe-se lá porquê, nos parecia nosso. Do outro lado do mar, havia a guerra. Começara no princípio dos anos 60 e tinha havido as catanas e as bombas que os movimentos de libertação fizeram explodir em lugares públicos ou nas zonas militares da África Nossa: Moçambique, Angola, Guiné. E naquelas terras “nossas” já tinham morrido muitos colonos e também muitos soldados que há alguns anos a Metrópole enviava para defenderem o solo pátrio. Dos meus companheiros de curso, já tinham morrido quatro, sabes, a faculdade de Medicina era aquela a que o governo mais recorria, mas a certa altura, já não me lembro quando, o serviço militar no Ultramar passara a obrigatório para todos, a História encurralava-nos. Faziam falta jovens aquém-mar, mas também para quem lá estava as coisas não corriam como devia ser, lembras-te daquela família que tinha interesses em África por causa dos Mercedes, daquela terrível senhora elegantíssima que dava lições de política, “Portugal está em toda a parte”, dizia, abanando a sua permanente azul. Quando o filho lhe morreu num atentado mudou de ideias, e não se viu mais à tardinha na piscina a dar lições de geopolítica. E assim, finalmente, Setembro chegou.
Não sei se aquilo que queres que te conte tem a ver com a entrevista que tens de dar, embora me pareça estranho para alguém como tu. É verdade que passaram muitos anos, o tempo apaga tudo, agora este país tem orgulho na língua que espalhou pelo mundo, não sei quantos milhões de falantes, agora a História transformou-se em números, como sempre aconteceu na História, estatísticas, e nas estatísticas tem-se orgulho, porque impressionam as Nações Unidas, prescinde-se dos massacres, das prepotências, das violências, da escravidão: a língua fica a boiar por cima destas misérias humanas, a língua é leve, é feita de palavras, são ar, o ar não tem nada a ver com os sofrimentos do corpo, com as feridas e o sangue. A língua pertence ao céu, o corpo é uma miséria feita de carne, de ossos, de sangue, sofre quando é tocado. A língua não, não a podes torturar. Há um parvo que disse num congresso “a nossa língua é a mais bela do mundo”? Deixa-o dizer. É parvo como as suas próprias palavras, também o Milosevic dizia que a língua sérvia era a mais bela do mundo. Hoje parece que se celebra um acordo ortográfico entre as [comunidades?] que a nossa língua espalhou pelo globo: África, Oriente, América Latina. Esta celebração toda dos media irrita pela sua banalidade, os corpos morrem, as línguas sobrevivem, são a parte aérea das nossas misérias corporais, porque somos feitos de cinzas e cinzas voltaremos a ser, mas a língua não, a língua pertence ao éter, tu também escreveste nesta língua, para pertencer ao éter, mesmo que não o quisesses, falar é colocar-se acima do corpo e da merda que ele contém, significa purificar-se de todas as doenças e de todos os pecados, seja qual for a língua que se escolher, das mais difusas às que se falam numa qualquer remota aldeia das florestas, não tem importância: a língua pertence a uma esfera superior e abstracta como as matemáticas, é divina.
E assim, dizia eu, finalmente Setembro chegou. E a possibilidade de realizar as nossas pesquisas científicas in loco. Porque com a língua podem-se fazer dicionários, glossários, gramáticas, sínteses, manuais de dicção, estudos fonéticos. Mas antes de as elevar ao plano abstracto onde Platão situou as ideias, aí onde elas são tão abstractas a ponto de alcançar a metafísica de que fala Kant, é preciso ouvi-las falar. É necessário que haja pessoas, homens e mulheres e crianças, que as falem com cordas vocais, que são os instrumentos da fonação, e que as formulem com a glote, que é feita de cartilagem mortal, criaturas como tu e como eu, que hoje somos e amanhã já não somos, caducos, mortais e vulneráveis. Assim são feitas as línguas, por quem as fala.
O nosso professor, conheceste-o, julgo eu, se calhar assististe até a alguma aula dele. Era um homem extraordinário, e acreditava firmemente na democracia, tinha-se até exposto e a polícia política tinha-o importunado mais do que uma vez. O velho professor, como escreveu a grande poetisa polaca, se fosse vivo diria “daquela época alguma coisa ficou, mas não a juventude”. Foi-se há muito o velho professor, e quando penso nele sinto uma saudade pungente. Dele, mas não só dele. Daqueles tempos, por mais que te pareça estranho, eram tempos fúnebres, o horizonte parado, sentíamo-nos mortos por dentro e, todavia, sinto saudades, porque no fundo acreditávamos que para lá do poço em que nos sentíamos, havia uma chamazinha como o veio de oiro de uma mina escondida nas vísceras da terra, e teríamos que ser nós a descobrir esse veio; uma vez achado, voltaríamos à superfície apertando nas mãos uma limalha de oiro, e os amigos e os familiares que, inquietos, estavam à nossa espera, haviam de abraçar-nos, gratos pelo tesouro que trazíamos das vísceras da terra.
Alugámos uma carrinha. Naquela altura para atravessar as montanhas do Norte de Portugal não havia outro transporte, pois com os comboios a locomotiva e a linha de bitola estreita seriam precisos dois dias, imagina, era uma viagem pavorosa, depois só se chegava até Chaves, e para alcançar as aldeias do interior da região havia aquelas camionetas desconjuntadas, mas quando o comboio chegava a Chaves a camioneta já tinha partido. Em Chaves havia uma pensão modesta onde podíamos ficar, mas tudo acabava por ser mais cansativo e caro do que alugar uma carrinha para nós. E aquele maravilhoso professor tinha conseguido arranjar uma carrinha só para nós.
2. Era uma carrinha de oito lugares, branca, com “Cruz Vermelha Portuguesa” escrito dos lados. Também o motorista era da Cruz Vermelha, mas ele não era alugado, aliás o aluguer da carrinha era simbólico, era um homenzinho jovial e gorducho, lembro-me dele como se fosse hoje, levava-nos porque tinha orgulho em colaborar num projecto cultural. Éramos uns poucos do último ano, não os conheceste, o Pedro e o Luís que não voltei a ver, a Linda, uma rapariga de origem inglesa que conheceste mais tarde, tem um antiquário ao pé de S. Pedro de Alcântara, podes lá encontrar os mais belos azulejos do século XVIII. E depois também havia o seu assistente, lembras-te?, mas sabes que não me recordo do apelido dele?, tinha umas certas peneiras mas era competente, acho que ensina numa Universidade americana, aonde não sei. Lembras-te de como eram as estradas portuguesas de então, lembras-te da EN nº1, a que ia para o Porto?, quando menos se esperava passava de asfalto para calçada, e as vibrações subiam-nos pela nuca acima. Saímos em Santarém, passámos por Castelo-Branco e depois Guarda, Viseu, Vila-Real. O que era então para mim Portugal? Era um país que queríamos mudar, oprimido por um regime. Mas o facto é que recebêramos daquele regime a sua retórica asquerosa: o jardim plantado à beira-mar, as quatro paredes caiadas com o São José de azulejos, o idílio falso de alguns fados da época; no fundo, éramos reféns daquela retórica ao atravessar o país com a carrinha da Cruz Vermelha, e aliás não tínhamos outros termos de comparação, nenhum de nós tinha estado nunca no estrangeiro, a única ideia de país, de paisagem, de pessoas, era o nosso. E, no entanto, se pensarmos bem, aquele Portugal causava uma ternura à qual era impossível opor-se, porque tudo era tão inocente, tão verdadeiro. Não me tomes por uma nostálgica, nunca senti nostalgia por uma sociedade camponesa da qual conheço a ferocidade da vida, nada disso, é que... enfim, era tão verde o meu vale, percebes? Porque aqueles vales de Coimbra eram mesmo doces, e as colinas estavam em flor, parece a letra de uma canção, eu sei, e os rios corriam como devem correr os rios, e os riachos, e Inês de Castro... E depois havia as pessoas, nas aldeias e nos campos, a gente de que fala o poema da Sofia [Sophia], ela colheu a essência profunda, aquela gente ainda descalça, que te olhava com olhos atónitos, “esta gente”, diz ela, “cujo rosto, às vezes luminoso e outras vezes tosco, ora me lembra escravos, ora me lembra reis”... É um poema que se adapta perfeitamente à situação que estávamos a viver, li-o durante a viagem e nunca mais o esqueci, “esta gente”, diz, “faz renascer meu gosto de luta e de combate contra o abutre e a cobra, o porco e o milhafre, pois a gente que tem o rosto desenhado por paciência e fome é a gente em quem um país ocupado escreve o seu nome”... “e recomeço”... aqui já não me lembro, saltei alguns versos, “recomeço a busca de um país liberto, de uma vida limpa e de um tempo justo”. Pois, era mesmo assim, era isso o que queríamos, uma vida limpa e um tempo justo. Lembrei-me da Sofia, desculpa se estou a divagar, de vez em quando vinha à universidade, o nosso professor era um seu velho amigo, convidava-a, as aulas livres não eram então permitidas, ela chegava, subia ao estrado com aquele seu ar entre o distante e o distraído, lia um poema seu que trazia escrito numa folha, depois despedia-se e saía com aquela elegância que era tão dela. Acho que foi o maior poeta que tivemos depois do Pessoa, mas esta é uma ideia minha, sabes porquê?, porque era uma aristocrata, quero dizer que tinha uma concepção aristocrática de como devemos ser nós pessoas, os humanos, e aquele fascismo mesquinho era populista, de um populismo trivial, como vocês tiveram em Itália, o problema é que os partidos comunistas também eles eram populistas, à sua maneira, o que vinha a dar ao mesmo, pensavam que a revolução viria do povo, não tinham percebido a lição de Gramsci, que o povo é um reservatório de reacção, no fundo Gramsci era um aristocrata do pensamento, desculpa se mais uma vez estou a divagar, em todo o caso, para voltar àquele tempo, também o nosso professor no fundo era um aristocrata, por isso era tão de esquerda, e do nosso país amava a língua, a língua, dizia sem saber que citava um Pessoa que ainda não fora publicado, é a nossa pátria. E era dessa pátria linguística que íamos em demanda com a carrinha da Cruz Vermelha, porque nessa altura a pátria era a bandeira desfraldada na televisão e o hino nacional, um pouco ridículo como quase todos os hinos nacionais do mundo, que na rádio ouvíamos pelo menos três vezes por dia, antes de cada noticiário, e no qual sem falta se dizia que as nossas tropas em Angola, Moçambique, Guiné, se portavam heroicamente para repelir os ataques traiçoeiros dos cobardes terroristas apoiados pelo marxismo internacional — quando o massacre acabou, soubemos que naquela guerra absurda tinham morrido dez mil jovens portugueses, estou a falar de 1970 ou 71, pelo menos quatro anos antes do fim.
3. Chaves, sede de concelho. Não sei se naquela época foste alguma vez a Chaves. É difícil contar-te como era, talvez tenhas visto Las Hurdes de Buñuel, aquele documentário de 1933, pode dar-te uma ideia. Lonjura, montanhas que separavam do mundo, até da Espanha franquista, que em comparação parecia desejável, porque ao menos ali tinha havido uma guerra civil da qual a gente conservava memória, havia pessoas que se opunham àquele pequeno maníaco assassino. Lá em cima, em Trás-os-Montes, a gente tinha uma expressão embrutecida nos rostos descarnados pela miséria, batatas e couves era o que podiam comer, as mulheres andavam vestidas de preto com lenços pretos na cabeça, como hoje em certos países islâmicos, era assim, a lua.
Dormimos num instituto religioso e no dia seguinte partimos para a aldeia que era o objectivo da nossa pesquisa linguística. Resumida em poucas palavras a pesquisa tinha a ver com a troca dos bês pelos vês, as dentais e a pronúncia das nasais. Arcaísmos. Se havia um lugar em que a língua tinha permanecido igual durante séculos, era aquele.
Do nome da aldeia já não me lembro: lembro-me que atravessámos um desfiladeiro, depois uma aldeia deserta, porque já tinham fugido todos para França, tinham ficado alguns velhos decrépitos sentados numas pedras diante de casas de pedra decrépitas, aqueles convencidos dos franceses não sabem que os portugueses fugiram de Portugal para não irem morrer a África, julgam que os pedreiros e as porteiras das casas parisienses foram para Paris à procura da sorte, estúpidos, foram-se embora para salvar a pele, todos aqueles que tinham então dos vinte aos trinta anos foram-se “a salto”, passando a fronteira como clandestinos, como fazem hoje os africanos que vêm aqui parar, mas naquela época a Europa unida não pagava a um Kadafi para que os recolhesse em campos de doce extermínio, naquele tempo a Europa era fechada mas muito mais aberta do que hoje, dava possibilidades a quem fugia.
Era uma aldeia de sobreviventes, se assim se pode dizer, no sentido que ainda havia homens válidos que cultivavam os campos, havia as cabras, as galinhas, o milho, uma igreja, algumas crianças. Trezentas ou quatrocentas pessoas, parece-me, talvez mais, os homens todos eles acima dos quarenta, os jovens estavam no Ultramar a defender a pátria. E lembro-me do padre. Nunca falou, quase nunca, e entendemo-nos assim, como a gente se entende sem ser preciso falar, no domingo de manhã fomos à missa, ele fez um breve sermão, leu só um trecho do Evangelho, depois disse aos paroquianos que a Comissão Científica tinha vindo de propósito de Lisboa para ouvir as vozes deles, porque, como explicou, recolhíamos as vozes para as estudar na Universidade, apontou para nós, tínhamo-nos levantado e sorríamos para aquela plateia de homens e mulheres que olhavam para nós com ar interrogador, como se olham os animais exóticos, linguistas, dizia o pároco, éramos linguistas e estudávamos a língua, a maneira mais antiga de pronunciar a nossa língua, por isso tínhamos ido até ali com os nossos instrumentos, para gravar as vozes deles e levá-las até Lisboa, à Universidade de Lisboa, vejam lá.
4. Lembro-me que naquela tarde havia tanto sol. Em Trás-os-Montes há castanheiros centenários, e lembro-me sobretudo das copas dos castanheiros inundadas de sol, e os ouriços dos castanheiros, amarelos, os castanheiros muito verdes e os ouriços amarelos, outonais, o Outono chega cedo às montanhas de Portugal.
A pesquisa tinha a ver com as labiais e as líquidas. Os bês em lugar dos vês é típico do norte de Portugal, um pouco como em Espanha, dizem “baca” em vez de “vaca”, o vê transforma-se em bê e vice-versa, mas não sempre, e naquela zona a confusão é mais marcada, mas de certo modo há regras, o professor procurava-as, procurava as regras. (…)
Tínhamos pousado o gravador num banco de igreja que estava ao lado do altar, ao pé da porta da sacristia. O (...)