“A guitarra evoluiu mais nesta década do que em 200 anos de história”
António Chainho assinala 50 anos de carreira com um disco de originais, Cumplicidades, que chega segunda-feira dia 23 às lojas e com um concerto no Grande Auditório do CCB, em Lisboa, a 10 de Abril. Uma merecida celebração.
É isso que ainda hoje, à mistura com tantas voltas que já deu ao mundo e nos palcos mais cosmopolitas, lhe vem à mente quando fala do disco que imaginou para celebrar os seus 50 anos de carreira e que chega às lojas esta segunda-feira, 23 de Março. A guitarra? Começou a dedilhá-la muito novo, por brincadeira, até que o pai, que também tocava, lhe comprou uma guitarra requinta, mais adaptada ao seu tamanho. O pai ensinou-lhe as bases do fado na guitarra portuguesa e o resto aprendeu ele, de ouvido, com muito trabalho.
António Chainho tem uma casa em Lisboa mas conserva outra no Alentejo. “Quando lá estou só ouço os pássaros, mais nada, estou ali concentrado e as ideias vão surgindo. Saio cá para fora e vejo o mar ao fundo, o montado todo, as ovelhas, os porcos, e tudo aquilo me faz criar ideias.” Mas não compõe só no Alentejo, também o faz em Lisboa. Sobretudo não compõe por obrigação. “As inspirações nunca vêm quando a gente quer.” Antigamente, registava tudo na memória. Agora, grava as ideias até com o telemóvel.
Um moinho musical
Da infância, há várias imagens que transporta para este disco. O moinho, por exemplo. O avô dava-lhe um tostão para encher cada “barrinho” de água e levá-lo até ao moinho. E até chegava a dormir lá, por gosto (os pais não o impediam), fazendo uma cama com dois sacos de trigo. “Adorava aquilo. Cheguei a levar a guitarra para lá.” Gostava de ouvir o barulho regular das mós, no interior, “confundindo-se com o som que saia das velas do moinho cá fora”. Para um ouvido habituado à música, era já um metrónomo.
Na sua casa de Lisboa, disse a João Monge: “Criei uma coisa instrumental, pensando na minha vinda do Alentejo para Lisboa, mas a sonhar com barulhos, das ovelhas, das cabras, da labuta alentejana, e aminha chegada depois a Lisboa a cantar o fado Menor, o rei do fado, já com o ambiente da cidade de Lisboa”. E ele fez uma letra a que chamou O moinho, gravada depois com o Coral de Serpa e com Helder Moutinho. A par dela, há mais notas vivas da memória, como os instrumentais Os moinhos da minha infância e Deambulando pelo Alentejo (este com o trompete de Raul d’Oliveira) ou a letra que Paulo de Carvalho escreveu para Fado áureo, que retrata Chainho como poucas outras.
As músicas foram todas escritas por ele, e foi mostrando-as a músicos e cantores que foi compondo o disco a que depois chamou Cumplicidades. Um disco, afinal, que faz o que ele sempre tem feito: pôr a guitarra portuguesa a dialogar com outras vozes, sejam elas humanas ou de instrumentos das mais variadas geografias, do Ocidente ao Oriente. É assim que, neste disco, António Chainho tem a seu lado nomes como Vanessa da Mata, Rui Veloso, Ana Bacalhau, Paulo de Carvalho, Helder Moutinho, Coral de Serpa, Ana Vieira, Filipa Pais, Paulo Flores, Kepa Junkera (num instrumental vigoroso e dançante), Pedro Abrunhosa, Fernando Ribeiro (dos Moonspell), Raul d’Oliveira (na balada que fecha o disco), os letristas João Monge, Tiago Torres da Silva e Paulo Abreu Silva e os músicos Ciro Bertini (que também produz), Tiago Oliveira (que o assistiu na produção), Ivo Costa, Carlos Lopes, Ruca Rebordão e Jon Luz. Uma “multidão” em dezoito temas, que serão apresentados ao vivo num espectáculo no Grande Auditório do CCB, em Lisboa, na noite de 10 de Abril pelas 21h. E vários destes seus parceiros estarão lá.
O valor das escolas
Voltando à infância e à sua aprendizagem musical, feita sobretudo à custa da rádio e de ouvidos muitos atentos: “Quando eu descobria uma coisa, ficava felicíssimo. E depois treinava muito. Os guitarristas, muitos deles profissionais, que passavam por lá [pelo café do pai, onde se tocava e cantava o fado, e pelas colectividades locais] ouviam a minha versão e nunca acreditavam que eu tivesse aprendido tudo aquilo sozinho.”
Mas aprendeu. E quando veio para Lisboa teve que continuar a aprender assim, porque não raro os guitarristas lhe viravam as costas, com medo que lhes viessem tirar o lugar. O contrário do que António Chainho fez depois e faz ainda hoje: ensinar a tocar em escolas, pelas quais ele tanto se bateu e que hoje têm cada vez mais alunos. “Agora há escolas e guitarristas a dar aulas em casa, coisa que na altura não havia. Quando eu dei uma entrevista a falar nas escolas, houve guitarristas que me telefonaram a dizer para não me meter nisso, que o que havia já era pouco e eles sobreviviam nas casas de fado.”
Mas ele insistiu. E repete que “era preciso abrir-se uma escola de ensino da guitarra portuguesa para passados dez anos, ou mais, termos já guitarristas à altura de ensinar como deve ser. Ora a guitarra evoluiu mais nesta década do que em duzentos anos de história. Porquê? Porque sem escola, sem ensino, não se vai a lado nenhum, seja em que profissão for. É possível aprender sozinho, mas é limitado. Se há hoje uns dez jovens já a tocar muito bem, daqui a dez anos haverá uns cinquenta. E assim sucessivamente.”
Mas é preciso ainda outro passo: a criação de estilos próprios. “Enquanto eu fazia apostas, no café do meu pai, a adivinhar, e adivinhava, quais os guitarristas que estavam a tocar na rádio, hoje não consigo fazer isso. Tocam todos muito da mesma maneira. Na altura distinguia-se o virtuosismo do sentimento e da melodia, hoje a técnica está mais aperfeiçoada mas a sonoridade é mais idêntica. Por um lado é bom, evolui, mas por outro são poucos os que se distinguem pela garra ou pelo gosto.” Lá chegaremos.