Itália
Esta 'officina' é a loja mais bonita do mundo?
Vamos por Florença e nenhum dos espaços de Santa Maria Novella tem o cheiro da medicina que se praticava no séc. XVII e que curava o que era curável. Com licores, vinagres, loções. Em todos eles paira uma nuvem que cheira a rosas ou a flor de laranjeira.
A erboristeria fica virada para o claustro. Como traduzir correctamente erboristeria?, ervanária? São trinta metros quadrados (medição imprecisa), dominados pela grande janela que atira para o claustro. Não é o coração da Officina Profumo-Farmaceutica di Santa Maria Novella, ou não é agora. Mas foi o coração a partir do qual a casa se abriu ao mundo que havia para lá dos muros do convento em 1612. Há quatrocentos anos mais dois.
Foi um ano de celebrações, 2012. Recuperaram, por exemplo, os frescos da escola de Giotto que revestem todas as paredes da sacristia, o céu azul estrelado a ouro. Mas a visita a esse reduto de silêncio e esplendor fica para mais tarde.
Portanto, agora a erboristeria que atira para o claustro. O maior claustro de Florença, em 1221 parte de um convento grande e rico, habitado por trezentos monges dominicanos. A ordem estabeleceu-se em Florença, num caminho que agora dista 20 minutos (passo apressado) do duomo, do baptistério, do campanário. Talvez ficasse então fora do núcleo da cidade, ponto de passagem de peregrinos, forasteiros, cruzamento de caminhos. Com vida própria, cultivo de terras, uma igreja de fachada imponente. Uma tranquilidade que se respira e que torna inimaginável o sangue a correr pelas ruas como o viu Dante, na Florença da Idade Média.
Estou encostada a essa janela que dá para o claustro, é o entardecer. Tinha caído um nevão nessa madrugada e a laranjeira que toma o lugar central parece mais bonita e irreal. Há ciprestes a ladear o claustro e sob as arcadas frescos que datam de 1600. Frescos de uma beleza que se adivinha, mais do que se vê. (Prodígios de Itália: a beleza para onde quer que se olhe, numa tal quantidade que faz que uma boa série de frescos sob arcadas seja uma espécie de coisa banal.) Vêem-se os frescos pela janela e é tudo. O claustro é agora propriedade de uma escola militar e não é visitável.
Foi naquela sala que se abriu ao público um balcão para vender medicamentos, bálsamos e pomadas, feitos a partir das ervas medicinais cultivadas nos jardins do convento. Tal a fama. O nome do frade responsável pela audácia: Fra Angiolo Marchissi.
A sala tem móveis originais, recompostos numa estranha e harmoniosa combinação do gótico com o barroco. O tecto é de tons pálidos, azul bebé e rosa, como um pôr do sol memorável, e efeitos de estuque dourado. Muito importante: não cheira a erboristeria. Não tem o cheiro da medicina que se praticava no século XVII e que curava o que era curável. Com licores, vinagres, loções, preparados salvíficos. Em todos os espaços da officina paira uma nuvem que cheira a rosas ou flor de laranjeira. Também romã, amêndoa, calêndula. Uma profusão de cheiros que resulta num bem-estar de banho quente. Paira uma sumptuosidade que nada tem que ver com o ambiente austero que o convento teria então ou que se imagina que teria, pensando nas imagens de uma brancura asséptica que a cultura dominante nos legou, ou numa almofada de pedra sobre a qual Francisco de Assis dormia, numa igreja em Roma. Eram assim os conventos. Não era uma casa de franciscanos, mas de dominicanos. Faz diferença.
Ainda antes de deixar esta sala: por sobre a janela de vidro está desenhado a ferro um sol, símbolo do convento.
O século XIV foi ontem
Em 1612 como agora, eram especialmente bem-sucedidos produtos para o tubo digestivo. Umas pastilhas que sabem a menta e que se vendem numa lindíssima latinha cor de mostarda (do estilo Kompensan, com a vantagem de deixar o hálito fresco), cardo para o fígado, carvão e funcho para a expulsão de gases intestinais (excusare a descrição), o Elisir Stomatico de sabor agridoce.
Era uma medicina considerada genial. Infelizmente não resolvia o problema de gota de que padeceu boa parte da família Médici, geração após geração. Mas foi criado um licor, feito com extracto de dez ervas, melissa e uma percentagem de 35% de álcool, baptizado com o nome Liquore Mediceo.
Ao lado desta sala primordial, uma outra que se parece com uma sala de estar. Uma sala verde em tempos usada para acolher hóspedes ilustres. Nas paredes, retratos de frades que se distinguiram na farmácia, o último dos quais, por altura do confisco dos bens da Igreja pelo Estado, concedeu ao sobrinho a propriedade da officina. No ano de 1866. A casa continua a ser propriedade privada, dos descendentes do dito sobrinho, Cesare Augusto Stefani.
A sala verde é uma sala entre salas, a meio caminho entre o espaço onde era a capela e agora se faz a venda principal, a sacristia e o espaço da oficina onde se serve chá e bolinhos.
As velhas máquinas da oficina, aquelas em que originalmente se destilavam flores e prensavam sabonetes, ainda estão por ali. Estão por ali como despojos de um tempo longínquo. Como estão as laranjeiras pouco exuberantes no cortile, o pátio. Tudo é belo, tudo faz parte, nenhuma peça esdrúxula. Nem sequer as rosas quase verdadeiras, quase artificiais que preenchem pequenos cestos, sobre as mesas. São rosas verdadeiras (confirma o tacto), sem gotas de orvalho ou o frescor da natureza, mas verdadeiras, e estabilizadas, alimentadas com glicerina. Ideia prodigiosa!, passe de magia. Quando se afunda a cara no conjunto, o cheiro é intenso. Duram até três anos.
Nem as rosas quase verdadeiras, quase artificiais destoam. Nada dá a impressão de peça fora do lugar. Angiolo Marchissi sorriria a olhar para a nossa cara de espanto, espantado também ele. Por mais exuberante que fosse a sua imaginação, não poderia supor que estaríamos, passados quatro séculos, a aspirar o aroma ou a tomar em pequeníssimos goles a acqua anti-histerica. (Como o nome indica, tem um efeito calmante. É uma das peças mais vendidas do extenso catálogo.)
Retomando a visita guiada: há maquinaria antiga que permite perceber como eram feitos, um a um, durante horas, sabonetes (à base de leite) e pomadas. Mas toda a produção de Santa Maria Novella tem agora sede na Via Reginaldo Giuliani, a três quilómetros do lugar onde me encontro, na zona norte de Florença. As receitas originais são replicadas, bem como o cuidado extremo com a selecção de ervas e óleos (“não testados em animais”, faz questão de sublinhar Simone, num estilo ágil e disponível).
É Simone, da equipa de relações públicas da officina, que pergunta se prefiro a visita em italiano ou em inglês. Está habituado a conduzi-la com profissionalismo, sem dar ares de papaguear uma velha cantiga. Em italiano, se falar piano, piano..., disse eu. E ainda bem. Acqua anti-histerica, por exemplo, soa muito melhor em italiano do que em inglês (seria, numa tradução literal, anti-hysterical water?). No, no. Sem graça. Sem o charme que faz do italiano, dos italianos, de Itália, um convite, um tapete encantatório que se desenrola. Nem teria a mesma graça ouvi-lo dizer frescos from Giotto’s school. Ouvi-o dizer que eram da escola giottesca. Assim mesmo: giottesca. E senti que falando na língua materna tudo ficava mais em casa.
Efectivamente, os frescos que revestem a parede da sacristia, relativamente pequena, lembram a famosa capela que Giotto pintou em Pádua. A mesma intensidade de azul, uma expressão arrebatada ou contraída desenhada no olhar, uma luz que irradia sabe-se lá de onde. E aquela poderosa sensação de que nos estão a contar uma história, através de imagens. Como hoje se faz com o cinema.
Os frescos datam de 1385. (Outra coisa espantosa em Itália: falamos de uma coisa do século XIV como se falássemos de uma coisa de ontem.) Ou seja, algures entre a fundação do convento, em 1220, e a abertura da erboristeria, em 1612, no melhor estilo giottesco, pintou-se esta sacristia.
O pé direito é alto, bem alto, sente-se o silêncio e o eco assim que se entra. É um fenómeno súbito, que se deve à acústica e nos desliga do barulho da loja, do burburinho de vozes e línguas, pequena babel, razoavelmente contida e bem comportada.
Reza a história que os frescos foram uma doação de uma família rica cujo filho foi salvo pelas mezinhas dos frades dominicanos. O leão, símbolo da família, cujo nome me escapou, está numa das paredes. A recuperação foi há dois anos, para a celebração dos 400 anos. Se não fosse por mais nada, valia a pena ir a Santa Maria Novella para ver este espaço.
Ainda passo novamente pela sala verde, a sala entre salas, antes de me atirar à sala de vendas, que ocupa o espaço que era da capela. Isto porque pergunto a Simone quais são os produtos mais vendidos, os grandes favoritos, e um deles está nesta sala intermédia. O pot-pourri de ervas e flores das colinas da Toscana maceradas em vasos de terracota (disponível em saquinhos de seda, para gavetas e guarda roupas ou numa maravilhosa romã que irradia um perfume intenso).
Os outros dois best-sellers da officina encontram-se na sala de vendas principal. São a água de rosas e o perfume Acqua Regina, uma fragrância superlativa criada para, como o nome indica, uma rainha. A colónia foi encomendada por Catarina de Médici, em 1533, e foi levada pela regente para França aquando do casamento com Enrico di Valois.
Junto dos consumidores chineses, japoneses ou coreanos, que constituem uma parte significativa do mercado internacional de Santa Maria Novella, tem muita saída o pó per bianchire le carni. Um pó branqueador, nem mais, pretendido por mulheres, sobretudo mulheres, que continuam a preferir a tez pálida, e usam resguardos nas mãos, nos braços, até aos ombros, para que a pele seja branca como o leite. Infelizmente, o pó não apaga sardas nem manchas de sol, mas se usado com um pouco de água forma uma pasta e tem um efeito esfoliante.
Penso no provável insucesso de um produto como o polvere per bianchire le carni num país como Portugal ou Brasil, onde as pessoas torram ao sol e escolhem para bronzeado palavras como “acetinado” e “cor saudável”. Alguma vez vamos gostar (ou voltar a gostar) de branquelas, por aqui
Peço a Simone que me mostre o vinagre que numa visita anterior me deram a cheirar e que é um poderoso estimulante. Sejamos claros: é um cheiro intensíssimo e desagradável, ao qual resistimos uns dois segundos, se tanto. Mas então é como se viesse uma vaga de energia, um estímulo que faz abrir os olhos e acordar. Tão fantástico quanto o efeito do vinagre é o seu nome, que diz qualquer coisa da sua história: aceto aromatico dei sette ladri. Era pois usado por ladrões para avançar por entre a cidade, semi-abandonada pela peste, e saquear o que era deixado pelo caminho. Aspirado directamente ou deitado sobre um lenço, permitiu “arroubos de bandidos” (como num verso de Chico Buarque). Por mais pífia ou coxa que seja a versão, o nome ficou, o clima de aventura ligado a este elixir também e o poder da sua acção: se dá para avançar por entre a peste negra...
Eis-me no final da visita, eis-me na sala de vendas, misto de capela onde esperamos ver mais um Miguel Ângelo, porque estamos em Florença, e palácio erigido para a família Médici, porque estamos em Florença. Nem uma coisa nem outra. Apesar disso, um quase museu.
Há quem diga da Officina Profumo-Farmaceutica di Santa Maria Novella que é a loja mais bonita do mundo. Talvez. Convém dizer que a entrada é modesta, numa porta sem aparato. Entra-se por uma rua lateral, a Vila della Scala, passado o largo de Santa Maria Novella e a imponente fachada marmórea da igreja. Avança-se pela rua, tentando reconhecer o convento, procurando uma coisa imensa, e nada disso. A escala da officina é outra. E de repente, o assombro.
Antes de sair ainda me enchi de perfume de romã. Oxalá o cheiro durasse três anos.
Informações
Officina Profumo-Farmaceutica di Santa Maria Novella
Via della Scala, 16
Florença, Itália
www.smnovella.it
Aberta todos os dias
Os produtos vendem-se em lojas Santa Maria Novella pelo mundo todo e em algumas (poucas) lojas multimarca. Nesta, que é a sede, a oferta é imensa. Os preços são upa upa, convém dizer. Um sabonete custa quase vinte euros. Uma colónia 70. Antiguidade paga-se? A qualidade, seguramente. Todos os empregados falam inglês. Há prospectos contando a história do espaço em várias línguas, inclusive em português. Expressão, sobretudo, da procura crescente por brasileiros.