“Eles querem conflito político, nós queremos salários dignos”
O centro de negócios de São Paulo foi ocupado por uma marcha ambivalente: por um outro lado servia de apoio a Dilma, por outro protestava contra medidas do Governo brasileiro.
Próximo verso: Cibele (não a cantora, a sindicalista: Cibele Vieira). “Eles têm de entender que foram derrotados nas urnas.” Cibele fala aos microfones do carro de som que a Central Única de Trabalhadores (CUT) plantou à frente do arranha-céus da Petrobras, do imponente arranha-céus da Petrobras em plena Paulista.
Estavam lá muitos milhares para a ouvir, concordar e aplaudir. A maioria vestia coletes vermelhos – da CUT, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do Partido dos Trabalhadores (PT). Ao todo, 100 mil manifestantes, segundo os organizadores. O número passeou de boca em boca a meio do percurso, entre sorrisos e rostos de satisfação. E serviu para motivar o grupo quando, no início e no final da marcha, desabou sobre a cidade uma chuva imensa, alagando estradas e passeios (nalguns locais, havia pelo menos 20 centímetros de altura de água).
A Polícia Militar, que accionou um contingente significativo para o local, foi mais contida nas estimativas: 12 mil. Os cálculos da Datafolha, do jornal Folha de de S. Paulo, apontam para 41 mil pessoas.
De qualquer modo, dezenas de autocarros afluíram à capital paulista para engrossar as fileiras desta manifestação, apesar de estarem agendadas passeatas similares para cidades de 23 outros estados brasileiros. Em jogo estava mais do que a reputação dos sindicatos e a sua proverbial capacidade de mobilização. O verdadeiro objectivo era depreciar a manifestação convocada por sectores conservadores e militaristas para domingo, no mesmo local.
“Quem sabe vir para a rua somos nós. Quem não tem medo de chuva somos nós. Quem não tem medo de coxinha somos nós. Querem vir? Venham!” Wagner Santana (“Wagnão”) está em cima de uma carrinha que desce a avenida em direcção à Consolação, por onde a marcha seguirá até à Praça da República, no centro. No asfalto, um cartaz completa-lhe o discurso: “Odeia o Brasil? Vai para Miami limpar privada.”
Uma mulher avança sozinha, gingando primeiro e logo dançando: “Aceita, playboy: você perdeu. Vai doer menos.” A ideia é uma das mais repetidas na manifestação, que só em andamento durou mais de quatro horas (formou-se aos poucos, desde manhã). E a ideia é esta: Dilma acabou de ser reeleita, a Justiça nada tem contra ela na operação Lava Jato, não há razão para pedir a exoneração (impeachment). O povo falou, está falado. Democracia, democracia, democracia.
Ao peito, esta coluna de gente de todas as idades leva um autocolante: “Dilma fica, em favor da democracia”. Só uma dissonância no início da manifestação, dois cartazes intrusos, quatro mãos tremendo: “Fora, Dilma!” “Vai para Cuba!” O par de contra-manifestantes fica pouco tempo sem resposta: “’Fora Dilma’ é para a burguesia”; “Fica, Dilma”; “Não ao golpismo”. Comentário lateral para toda a gente ouvir: “Eles querem conflito político, nós queremos salários dignos.”
Sem conflitos, sem incidentes. Às 15h09, ouve-se através do sistema de som, “essa manifestação já é um sucesso: pacífica, democrática”. Os discursos sucedem-se. Sob o sol escaldante do início da tarde, Dilma Rousseff não é poupada perante os seus eleitores: exige-se uma reforma política que acabe com o financiamento privado de campanhas eleitorais (a base da corrupção que assola o país) e o fim da austeridade prevista no programa de “Ajuste Fiscal”.
Um novo projecto para o país
Mas isto é “separar o trigo do joio”, como avalia um dirigente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB): aqui, fazem-se reivindicações; no domingo, o protesto será pela saída da Presidente e por um “terceiro turno”. Outra diferença, e oficialmente o principal ponto desta marcha, é a defesa da Petrobras como empresa pública. Afinal, é o lucro do pré-sal que permite a todas estas pessoas sonhar com o financiamento de um novo projecto para o país.
Lira Alli, da coordenação nacional do Levante, diz ao PÚBLICO que a oposição “está usando a Lava Jato como uma desculpa para privatizar a Petrobras”. É o que não querem: que a actual fragilidade da empresa comprometa áreas fundamentais como a educação, que dependem em parte do dinheiro que a empresa gera para o Estado. Esse é um assunto sensível para esta activista de 26 anos, estudante, que entende que as novas gerações serão fortemente afectadas.
O que tem Dilma a fazer, então? Em traços muito simples, com pele queimada e chapéu de palha: “Ela tem de trabalhar para nós. Não é? Não está certo? Então, é isso que eu penso.” Veio do Paraná, “com os companheiros aí”, para dizer isto ao PÚBLICO e andar. Oito horas de viagem até São Paulo e não aceita dar nome, idade, profissão. Mas fica feliz por dizer o que pensa e fazê-lo em tom definitivo.
O desenvolvimento vai uns metros mais à frente. “A manifestação é do povo em apoio à Presidente”, sintetiza Eduardo José Moreira, metalúrgico reformado. “O povo deu uma resposta. A avenida esteve tomada. É muito bonito.” Tem 64 anos, vem da periferia de São Paulo, de Santo André, no Grande ABC, um dos bastiões de apoio de Lula da Silva, e fala-nos com o mesmo sorriso com que vem descendo a Consolação há centenas de metros. Leva sozinho, franzino, uma grande bandeira verde e amarela, de cerca de três metros por quatro, escrita à mão: “A força da mulher – igual direito”. Começa por aí: “Eles [a oposição] não se conformam em ter uma mulher [no poder] e, depois, uma que pensa no povo.”
Eduardo José admite “erros” na governação, mas esse facto não lhe esmorece a vontade de estar presente. “A Presidente tem consciência desses erros e sabe que o Governo vai amargurar por isso. Mas às vezes temos de nos juntar com a lama para ter um bem comum”. É, todavia, “um Governo que faz a diferença”.
“Apesar de Dilma não estar a fazer um trabalho inteiramente bom, eu quero que ela cumpra o mandato para que foi eleita”, acrescenta ao PÚBLICO outro manifestante, João Figueiró, 31 anos. Voltando: democracia, democracia, democracia. Ninguém se cansa de repetir. Analista de sistemas, João acredita que “está um golpe em curso”, através de movimentos “que têm o PSDB e a mídia por trás”. Leva um único adereço: um cartaz em que se lê “Globo golpista”.
Os manifestantes queixam-se do apoio tácito dos grandes meios de comunicação à oposição a Dilma. João Figueiró, apartidário, afirma que o seu apoio à Presidente “não é incondicional”. Ainda assim, num ambiente político tão polarizado como o que se tem vivido no Brasil, resolveu que não podia resguardar-se, ficar à parte.
Os jovens do Levante, organização que teve origem nos protestos de 2013, também estão longe de estar agradados com os processos políticos no país. Para início de conversa, querem mais diversidade no Congresso. “As mulheres, a juventude, o povo não estão lá. São sobretudo homens, brancos, heterossexuais, milionários e evangélicos”, lamenta Lira Alli. Contudo, sublinha, “lutar pela democracia não significa mudar de Presidente”.
Lira é da geração que já troca a imagem de Che nas camisolas por imagens estilizadas de Dilma quando jovem e revolucionária. A mesma da União Nacional de Estudantes, que também marcou presença forte, e dos dois filhos de Eduardo José Moreira, que agradece às políticas “petistas” o facto de ambos terem tido oportunidade de frequentar o ensino superior. E não quer ver essa realidade retroceder. “Se o último suspiro da minha vida for lutar por justiça, eu vou lutar.”
Mas isso é o resto, o que sobra para mais tarde – a esperança, o futuro inteiro. Aí haverá certamente muito o que debater. Para já, o que estas pessoas têm em comum é a defesa dos resultados eleitorais de 2014. O que está longe de ser coisa pouca.