O poeta sem biografia

A obra de Fernando Echevarría, construída de maneira silenciosa, parece um objecto arquitectónico de grande envergadura, em que nada escapa a uma geometria rigorosa e ao primado da dimensão intelectual.

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Fernando Echevarría foi, na semana passada, distinguido com o prémio literário Casino da Póvoa, anunciado e entregue na 16ª edição do festival Correntes D’Escritas nelson garrido

Este poeta nascido em Espanha, em 1929, filho de um pai português e de uma mãe espanhola, veio com a família, aos dois anos de idade, morar em Grijó, Vila Nova de Gaia. No dia em que lhe entregaram o prémio, na Póvoa de Varzim, comemorava os seus 86 anos. Estas informações bastante sumárias constam de uma “Nota Biográfica” incluída no volume de quase novecentas páginas, em papel bíblia, que recolhe todos os seus livros até 2006. Chama-se Obra Inacabada, foi editado pela Afrontamento e prefaciado por Maria João Reynaud (na verdade, um prefácio que é um estudo extenso e profundo). O livro agora premiado saiu já no final de 2013 (também na Afrontamento) e intitula-se Categorias e Outras Paisagens. Como já tinha acontecido com outros livros de Echevarría, também este tem um tamanho que não corresponde aos padrões: cerca de cinco centenas de poemas, ocupando quase quinhentas páginas. E quanto às evocações filosóficas do título (do termo “categorias”, tão estranho a um livro de poemas), recordemos que há antecedentes ainda mais notáveis: Introdução à Filosofia e Fenomenologia, assim se chamavam dois dos seus livros, respectivamente de 1981 e 1984. E Introdução à Poesia, de 2001, também soava a livro de um âmbito teórico.

     Um tensão fundamental entre poesia e filosofia, entre o pensar e o poetar  (à imagem da relação entre o Denken e o Dichten que a leitura heideggeriana de Hölderlin consagrou), entre a palavra poética  e a palavra pensante das disciplinas críticas percorre de facto a poesia de Fernando Echevarría, mas sem a desviar para um plano do conhecimento e da sensibilidade estranhos à poesia e inimigos dela. O ritmo latente das coisas do mundo não despareceu dela e vem até, muitas vezes, envolvido numa dimensão religiosa que, como observou Maria João Reynaud, muito deve aos poetas místicos ibéricos. Mas ela ergue-se num elevado grau de hermetismo e de abstracção. A sua música é bem audível e constitui, até, um dos seus traços mais salientes, na medida em que cria um espaço sonoro como só os simbolistas, com o seu desejo de uma “poesia absoluta” criaram. Mas não é menos importante nela a força visual da imagem, muito embora esta nunca se deixe apreender enquanto representação da realidade. Poderíamos chamar-lhe imagens do pensamento, intelectualizadas, tão estranhas à lógica da representação do mundo exterior como do mundo interior: psicologia e pathos sentimental estão ausentes, escandalosamente ausentes. O que se apresenta com toda a força é uma espécie de pulsão cognitiva que faz triunfar a imaginação poética como um discurso de conhecimento. Entre o a-temporal das categorias e a efectualidade da intuição (uma intuição que se torna imagem), eis por onde nos leva a poesia de Fernando Echevarría. Leia-se, por exemplo, este poema do seu último livro, para acompanharmos o devir-abstracto da realidade, num tal grau que está muito para além da canónica distinção entre subjectivo e objectivo, para além de instaurar um acontecimento que é ao mesmo tempo interior e exterior ao poema: “Fez-se manhã, pelo azul da frase/ o voo branquejava de gaivotas./ Ou expunha penumbras singulares/ tocadas por um júbilo de rosa/ fugidio. Subtil. E a azular-se/ conforme a pressa lhe afastava a rota./ Subindo foi, também, uma paisagem/ de trinos matinais, pinhos e a pompa/ do rio, atravessado por mais aves./ E tudo isto rompia pela glória/ de uma escuta contínua de vagares/ onde os ritmos se ajustam. Cumprem. Vogam/ ou atropelam luzes eficazes/ que só toleram pausas gloriosas.”  Prestemos atenção à insólita operação imagética que se dá neste verso: “o voo branquejava de gaivotas”. Noutro poema podemos ler “a brancura branqueja”; e noutro “pela palavra dentro sobe a noite”. O poema que citámos é um exemplo de como a epifania (elemento estrutural dos hinos de Hölderlin, não podemos esquecer) é importante em muitos poemas de Fernando Echevarría. Epifanias é, aliás, o título de um dos seus livros.

      A obra poética de Fernando Echevarría contrói-se assim numa grande distância em relação à contingência biográfica do seu autor e à realidade empírica. Nada lhe é mais estranho que a lógica expressiva, confessional ou testemunhal de um eu. E o tempo que lhe é próprio não é um tempo com datas. Nem por momentos breves esta poesia convida ou permite que se salte da Obra para o Autor e vice-versa. Nada nela desencadeia o exercício da decifração em chave biográfica. A instância do poeta mantém completamente afastada a entidade civil do indivíduo chamado Fernando Echevarría.

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    No entanto, a Nota Biográfica, não assinada, incluída na Obra Inacabada, fornece alguns elementos que satisfazem uma legítima curiosidade. Diz-se aí que Echevarría entrou com onze anos (em 1940, no ano a seguir à morte da mãe, no Colégio Cristo Rei, dos padres Redentoristas, onde permaneceu até 1946. Entrou a seguir num seminário em Espanha, fez estudos de Filosofia e Teologia. No ano em publicou o seu livro de estreia,  Entre Dois Anjos (1956), terminou o serviço militar, em Lisboa, regressou ao Porto e começou a dar aulas no ensino secundário particular. Nos finais de 1963, informa-nos ainda essa Nota Biográfica, partiu para Argel, depois de ter aderido ao M.A.R. (Movimento de Acção Revolucionária). Esteve, portanto, próximo do chamado “grupo de Argel” e de Humberto Delgado (que passou por Argel em 1964, vindo do Brasil, onde esteve exilado). Mas sobre isso, nunca Fernando Echevarría publicamente deu testemunho, tendo sempre preferido manter-se discreto. Em 1966 regressou a Paris e permaneceu exilado até 1974 (já não em situação de exílio continuou em Paris até à viragem do século) Que se sabe mais? Que foi próximo de Emídio Guerreiro (fundador do PPD) e que fez parte da direcção da L.U.A.R (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), na fase inicial deste movimento político, fundado em Paris, em 1967. Desse passado e dessa experiência nunca Fernando Echevarría fez alarde publicamente. E a sua obra poética ergueu-se poderosamente na maior das discrições e subtraída a toda essa matéria política. Em Fevereiro de 2007, por altura da publicação da sua Obra Inacabada, fiz-lhe algumas perguntas sobre essas questões, e outras, por e-mail, para um artigo no “Expresso”. Seja-me permitido citar aqui algumas passagens. Sobre o Movimento de Accão Revolucionária, explicou Echevarría.: “O M.A.R. pretendia derrubar a ditadura pela luta armada e instaurar um regime democrático de esquerda. Ignoro quem o fundou. Estava, na altura, exilado em Paris e o Cravinho, de passagem na cidade, convidou-me. Devo acrescentar que me demiti ainda antes da prisão do general Delgado”. E sobre a sua decisão de não voltar para Portugal logo após a revolução, acrescentou: “Não regressei a Portugal após o 25 de Abril. Vim tomar pulso ao que acontecia. E o resultado não me pareceu estimulante nem, por outro lado, achei decente que, após o cumprimento de um dever cívico, viesse alguém apresentar a factura do facto”.  E no momento de fazer um balanço reconheceu: “Sempre pensei e agi como se a política e a poesia pertencessem a actividades de ordem diferente. De resto, nunca tive a impressão de ser um revolucionário, mas de estar a exercer um acto cívico por meios que a ditadura, dada a impossibilidade de solução democrática, me impunha”.

      Fernando Echevarría pertence nitidamente a uma categoria de poetas que tudo fazem para expulsar a dimensão biográfica, de maneira a que na obra sobressaia uma aguda consciência do acto de escrever e não aquilo que é anterior e exterior a ele. Evidentemente, esta atitude é responsável por uma enorme intelectualização da realidade, o que não significa a sua anulação. Maria João Reynaud, na Introdução à Obra Inacabada fornece dados convincentes para traçar a genealogia da poesia extremamente culta de Echevarría. Mas são tantas as ramificações genealógicas evocadas, que temos a impressão de que esta obra tem algo de enciclopédico: há, em primeiro lugar, e sempre referida, a matriz hispânica e os místicos. Mas há também a teoria escolástica, a sensibilidade maneirista, o virtuosismo e o conceptualismo barrocos, o Simbolismo, a intelectualização moderna do poético. Mas não podemos esquecer que Echevarría leu os latinos e gregos no original. E que frequentou, longamente, nas suas leituras, S. Tomás de Aquino e os neotomistas, Plotino e Santo Agostinho. E a fenomenologia, evidentemente.

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