No site GOG, especializado na comercialização de clássicos sem restrições de DRM, “Grim Fandango” é o jogo mais desejado de sempre, com quase 47 mil votos a reclamarem a inclusão dele no catálogo da loja, finalmente satisfeita. Cerca de década e meia fora de circulação contribuiu para que tivesse adquirido reputação de culto e, para alguns, um estatuto mítico de “magnum opus” da era das “aventuras gráficas”, já no ocaso desta.
Dirigido por Tim Schafer para a LucasArts, em 1998, “Grim Fandango” decorre durante o “Día de Muertos”, em quatro anos sucessivos destes festejos. Na Terra dos Mortos, habitada por calacas animadas, os defuntos com passados menos virtuosos estão de passagem, condenados a uma “viagem” redentora de quatro anos até poderem aceder à Terra do Eterno Repouso. Este percurso insólito enquadra uma intriga vagamente policial, protagonizada por Manny Calavera, caricatura do detective arquetípico da literatura de bolso que se manifesta, sobretudo, nos diálogos com mulheres, carregados de implícitos que denunciam tensão erótica.
O fundo carnavalesco de Dia dos Mortos, pleno de inversão e paródia, em que são os vivos que provocam “calafrios”, é ideal para o cortejo corrosivo de Schafer, a que pouco escapa: da “intelligentsia” mundana que conspira revoluções num bar de “beatniks mortos” ao som de “free jazz”, enquanto deixa sem amparo as exploradas abelhas operárias, à polícia corrupta que as oprime e protege o jogo clandestino das vilanias do “socialismo”. Talvez Chepito, o homem que vagabundeia de lanterna no fundo do Mar das Lamentações, como um Diógenes do meio subaquático, procure uma alma que seja honesta.
Como sempre nos jogos de Tim Schafer, brilham personagens secundários com obstinações particularíssimas. Avulta, neste “Grim Fandango”, o mecânico Glottis, parceiro de Calavera, um enorme demónio com voz de cantor de “scat” e personalidade aditiva que capitula nos esforços de resistência à compulsão para conduzir automóveis modificados em velocidade e para apostar em corridas de gatos. Do conjunto de jogos que desenvolveu para a LucasArts e, mais recentemente, para a Double Fine, ficará como legado certo uma galeria variada de personagens caricaturais, profundamente humanos e caracterizados com precisão.
A versão “remasterizada” agora editada acrescenta novas texturas, um novo registo da banda sonora, comentários da equipa e substitui os velhos “comandos de tanque” a que muitos jogadores não se adaptaram. Nesta versão, felizmente opcional, perdem-se, no entanto, o interface limpo da edição original e uma das mecânicas mais interessantes do jogo - os elementos relevantes no cenário para progressão da narrativa ou resolução de puzzles serem identificados pelo olhar inquisitivo de Calavera. Mantêm-se os elegantes cenários primitivistas que modernizam motivos de arquitectura pré-colombiana e uma rara dobragem para língua portuguesa, no caso brasileira e óptima, que converte, adequadamente, em portunhol o “Spanglish” da versão original.
No excelente Hardcore Gaming 101, sugere-se, e bem, que “Grim Fandango”, em tempos noticiado pelo interesse de Tim Burton em o adaptar para o cinema, seria único em qualquer meio. No entanto, a utilização de um meio interactivo proporciona oportunidades únicas de experimentação textual que Schafer não desdenha, como numa sequência com a segurança Carla, em que procuramos sobrepor-nos ao fastidioso monólogo dela, ou no bar Blue Casket, em que construímos o nosso próprio poema “beat” durante uma sessão de “poetry slam”. Como acontece com grande parte da banda desenhada e do cinema de animação, recai sobre o meio dos videojogos um anátema de puerilidade. “Grim Fandango” - com as suas piscadelas de olho a jogadores informados, convidando-os a entrarem no jogo da intertextualidade - é um dos títulos adultos que ajudam a questionar essa ideia assente.