Carlos Alexandre teve de jurar em tribunal que não violou segredo de justiça
Almoço de magistrado com jornalista originou denúncia anónima, que acabou por ser arquivada.
Não fora a medicina chinesa e nada disto teria sucedido. Adepto da acupunctura desde que um conterrâneo seu de Mação se tornou discípulo do conhecido médico Pedro Choy, Carlos Alexandre concordou em almoçar no Verão passado com o jornalista da Visão Francisco Galope, a pedido de um procurador das suas relações. O repórter queria fazer um perfil do juiz e recorreu a este magistrado, que conhecera num curso de medicina chinesa e sabia ser amigo do juiz. Há muito esquivo à comunicação social, Carlos Alexandre declinou colaborar na elaboração do artigo, alegando que vários jornais já tinham esmiuçado os seus hábitos, ao ponto de descreverem aquilo que supostamente comia ao pequeno-almoço. Mas acabou por concordar em ir à tasca de Moscavide um dia depois de Ricardo Salgado ter sido detido e de o ter interrogado.
Por correio azul
A denúncia anónima chegou em correio azul à Procuradoria-Geral da República um mês depois, dirigida não a Joana Marques Vidal mas à procuradora-geral distrital de Lisboa, Francisca Van Dunem, e a um membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pelo distrito do Porto, Jorge Alves de Oliveira. “Nos dias seguintes à detenção e inquirição do dr. Ricardo Salgado, o sr. juiz Carlos Alexandre desmultiplicou-se em contactos directos e pessoais com jornalistas. Num dos encontros falou com detalhe sobre o interrogatório de Ricardo Salgado e outros detalhes do processo. Quem assistiu ao almoço, ficou a saber como Ricardo Salgado foi confrontado com um documento que dava sem efeito o contrato-promessa de venda da ESCON [sic] à Sonangol, mostrando desconhecer o documento”, lê-se na denúncia. A missiva assegura também que o magistrado teria ainda revelado como houve 27 milhões de euros que “andaram num virote de um lado para o outro” nos negócios do Banco Espírito Santo Angola, numa tentativa dos suspeitos de lhes fazer desaparecer o rasto.
Sugerindo às autoridades que usem o sistema de geo-referenciação dos telemóveis dos envolvidos para comprovar aquilo que escreve, o autor da carta termina com um recado: “Relativamente a esta violação, poderão lavar as mãos como Pilatos, mas não poderão dizer que nada souberam”.
Na sequência da denúncia, foram ouvidos jornalistas de vários órgãos de comunicação social no Tribunal da Relação de Lisboa, onde o assunto foi parar por as suspeitas recaírem também sobre um juiz. A maioria deles tinha escrito sobre a detenção do banqueiro, uns inspirando-se em material já publicado por colegas, outros recorrendo a fontes de informação judiciais. Recusaram-se a revelar que fontes tinham sido essas, invocando o sigilo profissional, mas todos declararam que Carlos Alexandre não estava entre elas. E chegaram mesmo a queixar-se do carácter demasiado reservado do juiz. Um deles explicou de que forma havia conhecido o magistrado, há muitos anos atrás: “Constituiu-me arguido pelo crime de espionagem quando trabalhava para a Polícia Judiciária Militar”.
O Tribunal da Relação também confrontou as declarações feitas no interrogatório a Ricardo Salgado com o teor da denúncia. No dia em que um antigo deputado do CDS contou, na comissão parlamentar de inquérito ao BES, que era ele quem preenchia o IRS do banqueiro, e de graça, Carlos Alexandre foi finalmente prestar declarações à Relação sobre a denúncia de fuga de informação.
Dispensa de advogado
Tal como as restantes testemunhas, foi obrigado a jurar que falaria verdade e advertido de que, caso o não fizesse, incorria em multa ou mesmo em prisão. Prescindindo do direito de se fazer acompanhar por um advogado, disse à magistrada que o interrogou que nunca tinha “refeiçoado” com os jornalistas em causa, à excepção do da Visão, com quem não viu nenhum inconveniente em almoçar. Negou peremptoriamente ter-lhe passado qualquer tipo de informação sobre o processo de Ricardo Salgado. “Seria temerário da minha parte fazer qualquer consideração a esse respeito num restaurante onde é impossível ter qualquer tipo de privacidade”, observou, acrescentando que a carta anónima visaria “criar um ambiente de suspeição” à volta da sua pessoa ou mesmo afastá-lo do processo ou do próprio tribunal.
Além de tudo, os dados que a denúncia dizia terem sido transmitidos ao jornalista não batiam certo com os que constavam do processo: no interrogatório, “falou-se, sim, nuns 52 milhões de euros, e a venda não era feita nominalmente à Sonangol, mas sim a entidades cuja beneficiária era a própria Sonangol, ou administradores seus”. Não fosse a denúncia anónima e o juiz reservar-se-ia o direito de processar o seu autor.
Embora admitindo que alguns dos artigos publicados sobre a detenção do banqueiro indiciavam violação do segredo de justiça – não sendo o caso do trabalho do jornalista da Visão, que, naquela altura, nem sequer escreveu sobre este tema –, a procuradora encarregue deste inquérito acabou por arquivar o processo, até por o denunciante desconhecer o teor das respostas dadas por Ricardo Salgado durante o interrogatório. Este não será o único processo do super-juiz envolvendo violação do segredo de justiça.