O ADN do Fantasporto ainda chama, mas há uma parte da cidade que não ouve

Entre os que lhe são fiéis por dar a conhecer filmes “mais exclusivos”, há os que se queixam de o Porto não olhar para ele como devia e quem, à primeira vista, comente que “parece haver menos gente”.

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Este ano, o Fantas tem 173 películas de 32 países, nas quais se contam 48 estreias mundiais e europeias Nelson Garrido

Viu o Fantas abrir-se a géneros que extravasam o terror e o fantástico, assistiu à chegada das novas gerações e diz-se, com visível orgulho, parte integrante de um público que se habituou a ser receptivo a “coisas diferentes” e que, garante, se tem dado bem com isso. “O festival sempre deu a conhecer novos realizadores e alguns acabaram por se tornar conhecidos mundialmente”, recorda.

Entre 27 de Fevereiro e 7 de Março, há, por aqui, uma lei não escrita que diz que as longas-metragens inéditas valem mais do que os blocksbusters e é isso que serve de chamariz para os que se vão juntando no hall do teatro municipal. “Confesso que não conheço a maioria dos filmes, mas é esse o meu interesse. Tem coisas mais exclusivas que dificilmente se encontram no cinema”, diz Fernando Hanciau, brasileiro, um dos muitos espectadores estrangeiros do festival.

Só que, garante quem conta anos a fio no Fantas, se esta especificidade é enaltecida por quem vem de fora – no Rivoli, circulam, por estes dias, espanhóis, holandeses, ingleses –, há também uma parte significativa da cidade que insiste em manter-se à distância, por continuar a ver nele “só um festival de terror”. “É como aquele irmão que a gente não gosta de ver nas festas. Há aquela sensação de ser alguém de quem a gente gosta, mas depois, quando aparece, pensamos ‘ah, hoje não me apetece estar com ele’”, compara Pedro Afonso, habitué do festival desde 1993, enquanto aguarda, à entrada do teatro, por um dos muitos filmes que conta ver nesta edição – este ano, poderá escolher entre 173 películas de 32 países, nas quais se contam 48 estreias mundiais e europeias.

Tal como António Marques, “tem a sensação” de que tem visto menos gente nos primeiros dias do festival. E o facto de a direcção do evento ter admitido ao PÚBLICO que, pela primeira vez na história do Fantasporto, a sala do Grande Auditório não encheu na sessão de abertura (em que foi exibido o filme sul-coreano Haemoo), parece ir-lhes dando razão. A culpa, essa, atribuem-na muito mais à crise do que às polémicas que, em 2013, ensombraram a organização do festival.

Admitem, no entanto, que, do ponto de vista organizativo, o Fantasporto não escapou incólume à ruptura entre o casal Dorminsky e nomes como António Reis ou César Nóbrega, que, durante anos, integraram a organização do festival.

“Qualquer cisão é má. Era uma parceria antiga e tive muita pena. Notou-se mais no ano passado, sobretudo a nível organizativo”, admite António Marques, ao passo que Pedro Afonso garante ter notado, na edição de 2014, uma menor solidez no conjunto de escolhas, depois de “algumas pessoas terem saído da organização”.

Em Setembro de 2013, na sequência de uma reportagem da Visão, a Procuradoria-Geral abriu um inquérito à gestão da cooperativa Cinema Novo, responsável pela organização do festival, por alegadas irregularidades, sendo que a investigação ainda está em curso. No seguimento da polémica, alguns membros da cooperativa optaram por se afastar da organização do Fantas, tendo mesmo anunciado a intenção de processar Mário Dorminsky por “difamação e ameaças”. 

Mas, entre os que vão chegando, ninguém mostra interesse em falar nisso. Chutam as polémicas para canto, sob o argumento de que vêm pelo cinema. “Até haver uma decisão em julgado, até haver provas concretas, não muda nada. O ‘diz que diz’ a mim não me aflige”, garante Pedro Afonso.

Recorda, num vislumbre de nostalgia, o tempo em que o Fantas era “uma coisa mais de guerrilha, mais decadente, mas no bom sentido”. “No fundo, antes aquilo era um par de centenas de nerds. Depois foi crescendo. Os nerds têm-se mantido mas o marketing tem feito com que chegue a mais gente”, assente Paulo Sá, 44 anos no B.I. e quase 20 de Fantasporto.

Com o passar do tempo, diz, muito mudou, “no bom e no mau sentido”, mas garante que o festival ainda é “uma festa feita pelo público”, com características que o diferenciam. “O facto de, no final, o público poder falar com a organização, dizer o que achou melhor ou pior, é uma vantagem. Essa intimidade é aceite e é bonita”, sublinha.

Uma “festa” que, admite Beatriz Pacheco Pereira, teve forçosamente de se adaptar ao encurtar do orçamento. “Houve uma série de alterações porque nós adaptamo-nos sempre à realidade. Temos as dificuldades que todo e qualquer produtor cultural tem, que têm a ver com o financiamento e com patrocinadores”, defende.

Ainda assim, garante Mário Dorminsky, os constrangimentos não impedem o festival de continuar a ser um chamariz para os distribuidores... estrangeiros. “Temos cá 30 e poucos distribuidores, desde nórdicos a asiáticos. Os portugueses vão passando, mas não estão cá em permanência. Seguem a lógica de mercado dos festivais de Berlim e Cannes e esquecem-se que no próprio país também têm essa hipótese”, lamenta.

Num banco do Rivoli, sozinho, Fernando Morais aguarda o início da sessão seguinte, ou não tivesse 80 anos a pesar-lhe nas pernas. “É uma maneira de vir ao cinema, visto que já quase não há cinemas no Porto”, lamenta, explicando de pronto que o que o faz gostar do Fantasporto “não é o sangue a escorrer por todo o lado, são os grandes realizadores”.

No lado oposto, o grupo de Lucas Neves faz prova de vida da capacidade de o Fantas ser um aglutinador de gerações. Tem 21 anos, mas não falha uma edição desde os 16, fazendo do festival uma espécie de roleta russa. “Eu e os meus amigos preferimos não fazer grandes escolhas quanto aos filmes. Vimos à descoberta. Já encontrámos alguns filmes engraçados, sem sabermos ao que vínhamos, e já nos assustámos com outros”, partilha, divertido, lamentando que muitos dos portuenses não olhem a especificidade do evento da mesma forma: “Acho que a cidade não olha para o Fantas com os olhos que devia olhar. Preferem ver um filme americano, ir ao shopping, do que ver filmes que não são conhecidos. A cidade devia ter uma atitude diferente.”   

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