“Minha mãe cozinhava exactamente:
Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava”
Adélia Prado
1.
Medir a distância média entre duas pessoas. Não há fitas métricas assim tão invasivas, mas o olho mede, avalia, assusta-se, entusiasma-se. O olho é uma fita métrica emotiva, sim, mas ainda assim exacta.
E é isso: no Rio de Janeiro a distância média entre seres humanos é menor. E tal facto tem enormes consequências.
Quando caminho pelo Rio de Janeiro, vejo manchas humanas em movimento. É a única cidade, mesmo no Brasil, em que a cor das pessoas verdadeiramente não existe. Noutras cidades, quando um branco e um negro caminham lado a lado, mesmo em forte e excelentíssimo companheirismo, eu vejo o negro e vejo o branco. No Rio, não. No Rio, há manchas de pessoas. Passa uma mancha de dois, outra mancha de quatro, outra de seis, e só com muito esforço se conseguirá analisar as cores (como um analista amador de pintura). Aquela mancha de pessoas resulta - percebemos então só com muito esforço e quase de forma artificial - de um homem negro, de um mulato e de outro branco (por exemplo).
Distância média entre duas pessoas, portanto, com valores mínimos mundiais.
2.
No Rio de Janeiro os humanos não caminham lado a lado, caminham encostados uns aos outros, em movimentos oscilantes e ininterruptos que fazem abalar a noção de posição individual. Os pés e a cabeça de um carioca, que avança em grupo, nunca estão no mesmo eixo. Os corpos são, no Rio, organismos inclinados, a cabeça nunca está exactamente acima dos pés - está sempre ligeiramente ou muito ou muitíssimo à esquerda ou à direita. Entre os pés e a cabeça não há uma linha recta, mas uma linha curva. Alegremente curva.
(O corpo de um carioca nem quando está deitado está direito; tudo é efusivamente torto, inclinadíssimo e temporário.)
3.
De resto, nunca joguei ao popular jogo da batalha naval com um carioca, mas certamente esse jogo terá aqui regras distintas. É impossível pensar os barcos, mesmo os barcos, sempre na mesma posição no universo do Rio: a4, d7, a5, d8. Certamente mudam matreiramente de posição (pelo menos de noite): pé aqui, cabeça acolá.
No Rio, dizer: “quieto” a um ser humano, quer seja a uma criança quer seja a um homem ou uma mulher maduros, assume uma violência verbal e fisiológica como em mais nenhum sítio. Certamente os sensatos pais cariocas não dirão aos seus filhos “quieto”, orientarão, sim, a velocidade e a intensidade do movimento. Para a esquerda, para a direita, para cima ou para baixo, eis a questão.
Nenhum homem quieto entrará no Reino dos Céus (se o Reino dos Céus tiver uma área com a placa “Rio de Janeiro”).
4.
Talvez venha do solo ou da floresta ou das montanhas ou da água, mas o certo é que no Rio de Janeiro há um excesso de energia nos humanos que faz com que um caminhar seja muito próximo de um dançar e um dançar seja muito próximo de um conjunto de movimentos meio-eróticos meio-mágicos capazes de, no limite, mudarem a habitual direcção dos astros (ou, vá lá, a habitual direcção de um outro ser humano).
Como cada ser humano está carregado, como uma pilha, de uma enormíssima e tropical energia, ninguém vai do ponto A para o ponto B, pontos que distem cem metros, de uma forma eficiente e recta (como faria qualquer nórdico ou alemão sensato). Não, o carioca saltita e deambula entre o ponto A e o B; e saltitar de forma oscilante é a manifestação de uma força: tenho energia que sobra, não preciso de ir em linha recta. Trata-se, no fundo, de uma doação pública de energia. A cidade dá, o corpo devolve – eis o ciclo energético da cidade.
5.
(O Rio, como é evidente, é uma gigante cidade de gigantes contrastes, muitas vezes perversos e violentos, com grandes tragédias em ebulição. Mas celebremos, por agora, neste momento, a parte entusiasmante).
Digamos assim, para concluir: num certo sentido, a alegria é ineficaz. Ou seja: poderemos dizer, mudando o ponto de vista, que da eficácia sobra sempre uma compacta camada de tristeza. A eficácia não salta.
No fundo, o que se percebe no Rio de Janeiro é que a alegria é, afinal, a suma eficácia de um ser vivo. A eficácia humana que existia antes das máquinas - e que é contemporânea do mar, da floresta e da montanha.
Quantidade de entusiasmo por metro quadrado, medida de referência.
“As vacas velhas têm os olhos tristes?
Tristeza é o nome do castigo de Deus
e virar santo é reter a alegria.
Isto eu quero.”
Adélia Prado
fim