Tribunal inglês reverte decisão e devolve filha retirada a mãe portuguesa

A criança esteve desde Maio de 2014 com duas famílias de acolhimento, antes de ser entregue ao pai e avó paterna. Tribunal decidiu a favor da mãe em Janeiro.

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O sistema que vigora em Inglaterra e País de Gales foi apontado como "único" por eurodeputados do Comité das Petições de Bruxelas Daniel Rocha

Na altura, na urgência do hospital da mesma cidade, um hematoma na cabeça levantou suspeitas de uma pancada não acidental. A criança, de dupla nacionalidade, vivia com a mãe (então com 29 anos) e a avó materna nesta cidade localizada 60 quilómetros a leste de Londres e mantinha um contacto regular com o pai inglês, separado da mãe.

“O Tribunal de Família de Southend concluiu que a lesão não tinha sido causada por negligência ou um acto de violência da mãe, mas pela fragilidade genética presente nos ossos da bebé”, disse ao PÚBLICO a cônsul-geral de Portugal em Londres, Joana Gaspar.

A possibilidade de a fragilidade óssea ter agravado um hematoma provocado por uma queda acidental já tinha sido colocada no parecer de um dos especialistas consultados e que observaram a bebé: Alan Sprigg, radiologista pediátrico, considerou que, sob o hematoma, aquilo que parecia ser uma fractura podia ser apenas uma linha de estrutura óssea.

O especialista descreveu como possível, embora improvável, a versão de que a criança tinha sofrido uma simples queda, ao contrário do médico pediatra de serviço naquele dia 16 de Abril, para quem o hematoma na cabeça da menina não podia ser acidental. Os serviços sociais foram chamados à urgência do hospital e a criança, acompanhada pela mãe, ficou sinalizada.

O relatório produzido nos dias seguintes, entregue e aceite pelo tribunal, apontava “os potenciais riscos” de a menina ficar com a mãe, excluía o pai como possível cuidador por este ter estado com a filha três dias antes do aparecimento do hematoma (e ser assim também considerado suspeito) e recomendava a colocação numa família de acolhimento noutra cidade, até à eventualidade de surgir um familiar que fosse avaliado positivamente como alternativa aos pais. O tribunal acatou a recomendação e a menina foi retirada no início de Maio de 2014.

Superior interesse da criança
O PÚBLICO tentou esclarecer, na altura, junto dos Serviços Sociais de Southend os fundamentos da acusação contra a mãe, que sempre negou as alegações de maus tratos. Diane Keens, uma das responsáveis do departamento de colocação em famílias de acolhimento, disse não poder falar deste caso “por razões de confidencialidade”. Mas garantiu: “As decisões que envolvem o cuidado de crianças são tomadas depois de investigações muito detalhadas sobre cada caso individual. Damos sempre prioridade, no processo, ao superior interesse da criança.”

De novo contactada, por telefone e por email, para comentar a decisão do tribunal de entregar a bebé à mãe em Janeiro, Diane Keens remeteu para o gabinete de imprensa, que não respondeu. Também sobre a família Pedro, a quem foram retirados os cinco filhos em 2013 em Grantham, os serviços sociais desta cidade no Norte de Inglaterra nunca prestaram informações. Ainda não teve resposta a proposta feita no ano passado pela Embaixada de Portugal em Londres para que as crianças venham juntas para Portugal e sejam acolhidas numa instituição, para não ficarem separadas em famílias de acolhimento, como estão actualmente.

“Tenho visto vitórias inesperadas”, diz a jornalista belga Florence Bellone, que investiga há vários anos o sistema de adopções em Inglaterra e País de Gales e recebeu o prémio europeu de jornalismo Lorenzo Natali, em 2011, pela série de reportagens sobre o tema. “Raramente vi que fosse feita marcha atrás [na decisão inicial do juiz e na posição defendida desde logo pelos serviços sociais]”, afirmava ao PÚBLICO no ano passado.

Agora, Florence Bellone diz ter tido conhecimento, nos últimos seis meses, de quatro ou cinco casos em que as crianças foram devolvidas às famílias. “São vitórias individuais dos pais, mas ainda são em pequeno número. Para as famílias britânicas, não tem havido grandes mudanças. Quem contesta as decisões judiciais são as famílias estrangeiras.”

Algumas fazem-no com o apoio dos seus países. O Governo da Eslováquia ameaçou levar o país ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, conseguindo assim que duas crianças eslovacas voltassem para a sua família em Janeiro de 2014. Mais recentemente, também o Governo da Letónia se tem envolvido directamente. Por isso, admite Florence Bellone: “Podemos imaginar que começa a haver uma pressão.”

E uma maior atenção. Florence Bellone nota "um maior interesse da comunicação social britânica" e aponta como tendo impacto iniciativas como a Comissão das Petições em Bruxelas (onde vários casos foram expostos) e as críticas vindas do próprio sistema de Justiça — como as tomadas de posição do juiz Sir James Munby, que preside à divisão da família do High Court of Justice, um tribunal superior do Reino Unido, contra a possibilidade de um tribunal inglês ordenar a retirada de uma criança de uma família estrangeira e a colocar para adopção no Reino Unido. “Alguns juízes começaram a seguir as suas indicações”, realça Florence Bellone. “O interesse mantém-se e aumenta”, sintetiza.

"Práticas bem-intencionadas mas abusivas"
Uma resolução, de Janeiro, aprovada por unanimidade pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (que reúne 318 parlamentares dos 47 países do Conselho da Europa) aponta uma distinção inequívoca entre o sistema de Inglaterra e País de Gales (distinto daquele que vigora na Escócia) e o de outros países.

No documento que analisa os serviços sociais nos países-membros do Conselho da Europa, com data de 26 de Janeiro, a relatora Olga Borzova (Rússia) reconhece que, em muitos casos, a retirada é necessária e urgente para prevenir situações de perigo e admite a existência de casos em que as crianças deviam ser afastadas da família e não o são. Mas lamenta "práticas abusivas, mesmo se são bem-intencionadas", antes de referir especificamente o sistema da Inglaterra e País de Gales como “realmente único na Europa” pelo facto de “tantas crianças serem colocadas para adopção” sem o consentimento dos pais.

Na resolução, sem carácter vinculativo, as recomendações privilegiam o apoio a dar às famílias “para permitir que mais crianças possam ficar no seu seio e não ser retiradas”, mas também são apontadas situações extremas na Inglaterra e País de Gales que revelaram ser “extremamente trágicas” ou que “dizem respeito a erros judiciários”.

Nalguns casos, lê-se no documento, juízes em Inglaterra e País de Gales decidiram pela adopção forçada de crianças porque minimizaram a importância da condição física e a fragilidade óssea da criança (como agora no caso da mãe portuguesa). “A tragédia é que, mesmo quando os pais ganham em tribunal e provam a sua inocência, não podem recuperar os filhos, porque uma falha no sistema legal da Inglaterra e País de Gales significa que as ordens para adopção não podem ser revertidas”, acrescenta.

Em Novembro passado, na segunda reunião da Comissão das Petições do Parlamento Europeu em Bruxelas, dedicada a casos de retirada de crianças em famílias no Reino Unido, os serviços sociais britânicos foram apontados como “únicos” na União Europeia por “ameaçarem e intimidarem” os pais que contestam publicamente a decisão dos tribunais, referiu na altura o Daily Telegraph. Alguns eurodeputados desse comité denunciaram pressões “inaceitáveis” sobre as famílias.

Meses de exames e radiografias
A mãe portuguesa que recuperou a filha em Southend continua a não prestar declarações. Mãe e avó foram informadas, no início do processo, que estavam impedidas de falar à comunicação social ou publicitar o caso na Internet, sob pena de serem presas.

Ao longo dos nove meses em que decorreu o processo, com audiências no tribunal em Maio, Junho e Setembro, a menina (agora com 15 meses) foi submetida a inúmeros exames e radiografias. Nos primeiros meses, o tribunal optou pelo acolhimento numa família inglesa e ponderou a hipótese de entregar a menina a uns tios paternos (o que não chegou a acontecer). Em Agosto, a bebé foi entregue a uma segunda família de acolhimento temporariamente e apenas durante o período de férias da primeira. Numa nova sessão em Setembro, o tribunal decidiu entregá-la ao pai e à avó paterna, considerando-o apto para assumir a responsabilidade parental depois de um esgotamento nervoso, após a retirada, ter resultado no seu internamento psiquiátrico durante dois meses.

Depois da entrega ao pai, uma audiência voltou a ser marcada para Janeiro de 2015 — para nova apresentação de documentos e relatórios — e a decisão foi a favor da mãe. A cônsul-geral de Portugal em Londres congratula-se pelo desfecho deste caso e diz que não houve, nem podia ter havido, qualquer tentativa de interferência, tratando-se de um assunto judicial do Reino Unido. E esclarece: o consulado agiu naquilo em que podia, ou seja, “no apoio para garantir que os cidadãos nacionais têm um tratamento justo” e igual ao dos cidadãos britânicos, “mas nunca se imiscuindo no processo judicial ou na decisão judicial”.

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