Quando comunicar já não é uma obrigação

Um dos poucos registos da obra de um mestre: Álvaro Salazar.

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Álvaro Salazar e Pedro Junqueira Maia Maria João Gala

O profundo sentido de auto-crítica de Álvaro Salazar e a atenção que dedicou a outras actividades — nomeadamente à direcção musical, à divulgação e à edição da obra de outros compositores e ao ensino — terão contribuído para o adiamento da publicação da sua obra criativa. A primeira edição discográfica integralmente constituída por obras de Álvaro Salazar — Fugit Irreparabile Tempus — realizou-se apenas em 2008, numa fase tardia da sua actividade composicional. As restantes edições são pouco numerosas e integram alguns CD colectivos publicados a partir de 1999. Neste contexto, o disco Estudos Incomunicantes I/A assume particular importância pelo facto de se tratar da segunda edição fonográfica dedicada a Álvaro Salazar e por contribuir para a divulgação da obra de um dos mais importantes compositores da denominada “geração de 60”.

O substantivo “estudos” sugere um ensaio preparatório ou uma etapa provisória no percurso criativo de um artista. Já o adjectivo “incomunicantes” alude, ainda que de forma ambígua, à dificuldade ou mesmo à dispensabilidade da comunicação na criação artística. O título Estudos Incomunicantes I/A é por isso intrigante e até paradoxal, merecendo uma abordagem hermenêutica que ultrapassa o objectivo do presente texto.

Destinada a um efectivo de dois pianos, oito vozes e recitante, a obra apresenta um conjunto de elementos característicos da poética de Álvaro Salazar: a transparência das texturas sonoras, a tendência para a segmentação do discurso musical através da utilização de células curtas e notas isoladas e o recurso ao silêncio e às ressonâncias como elementos expressivos e estruturais. Igualmente marcante é a presença da poesia, que contribui para um discurso intertextual onde palavra e som se confundem.

Ao longo de 64 minutos, o discurso musical é protagonizado pelos dois pianos, sendo pontualmente comentado pelo coro (à semelhança de um coro trágico) que, recorrendo a uma linguagem situada no limiar da palavra (semântica) e do som (fonética), prepara a recitação final de um poema da autoria do próprio compositor. A obra produz no ouvinte um efeito psicológico intenso, uma espécie de suspensão temporal que se aproxima de um estado onírico, e que se deve à sua organização formal em largas secções, nas quais se processa uma transformação gradual e em espiral do discurso musical. Pelas características mencionadas, a obra evoca algumas das referências composicionais de Álvaro Salazar — Webern, Nono, Donatoni, Ligeti ou Feldmann —, mas acima de tudo ela exprime a individualidade e maturidade de um mestre!

A gravação conta com a participação de intérpretes portugueses de mérito artístico amplamente reconhecido — Eugénia Chvetz (piano I), Elsa Marques Silva (piano II), oito elementos do Coral de Letras da Universidade do Porto, José Luís Borges Coelho (direcção coral) e Inês Vicente (recitante). A interpretação revela sensibilidade e rigor na abordagem à partitura, particularmente ao nível da coordenação rítmica, do controlo das nuances de intensidade, no equilíbrio sonoro entre os vários intérpretes e na gestão do tempo musical, destacando-se em particular o desempenho das duas pianistas. A captação e a mistura áudio, da responsabilidade de Joel Azevedo, são igualmente excelentes, realçando toda a riqueza sonora da obra. As sessões de gravação realizaram-se na Casa da Música, na presença do compositor, tendo a direcção artística estado a cargo de Virgílio Melo, profundo conhecedor da obra de Álvaro Salazar.

booklet do disco inclui um interessante texto sobre Estudos Incomunicantes I/A, da autoria de Virgílio Melo, e também um conjunto de fotografias de Álvaro Salazar retiradas de um documento videográfico do processo de realização do disco realizado por Bruno Nacarato (um interessante teaser promocional, retirado deste vídeo, está disponível no site do Atelier de Composição).

A presente edição discográfica integra um projecto editorial mais amplo que inclui o terceiro volume da série de monografias Compositores Portugueses Contemporâneos dedicado a Álvaro Salazar (já disponível no mercado) e ainda a edição em partitura de Estudos Incomunicantes I/A (no prelo). Com este projecto, a associação cultural Atelier de Composição, dirigida por Pedro Junqueira Maia, prossegue o valioso trabalho de edição e de promoção do património musical português contemporâneo, tanto nas vertentes da criação e da interpretação como da reflexão teórica, mantendo-se fiel a uma filosofia editorial sólida, coerente e de utilidade pública. 

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