Poetisa e infantil no bom sentido
Adília Lopes acaba de publicar Manhã, um livro de memórias que é um livro de poesia. O reviver de um passado que os versos trazem à vida, mas que nunca realmente desapareceu da memória e do olhar da autora.
O seu bairro é “um sítio pacífico, com árvores”. Além disso, pensa Adília – demora escassos segundos –, “tem pessoas velhas, que são delicadas. Tem… paz.” “Por enquanto, tem paz.”, acrescenta a poetisa. Adília Lopes prefere esse termo à palavra, hoje mais comum, “poeta”. “As pessoas associam a palavra ‘poetisa’ a uma coisa má, pirosa. Também não consigo dizer: ‘Sou uma poeta.’ Até porque lembra a outra palavra feia.” A maneira como Adília Lopes fala das lojas da Estefânia, ou daquelas minudências que seriam tão difíceis de fixar por escrito, é a de alguém que presta uma atenção invulgar aos pormenores e àquilo que a distracção e a rotina nos fazem descurar.
Esta parte da cidade de Lisboa em que vive parece ser a única em que seria capaz de passar os seus dias. Nunca viveu muito tempo longe deste lugar. “sou a verdade/ que prefere não sair do bairro”, escreveu José Tolentino Mendonça num poema chamado Adília Lopes. “O máximo que estive fora de casa foi um mês e uma semana, em França, aos dezassete anos.” Essa experiência surge retratada em Manhã (Assírio & Alvim), que Adília Lopes acaba de publicar – “Em 1977, fiz um curso de férias em Dijon. Passei o mês de Agosto no Pavilhão Lamartine no campus universitário.” Algo que se repetirá em diversos pontos desta sua mais recente colectânea de poemas. Porque é de “um livro de memórias” que se trata. Manhã, confirma, “fala da minha infância. É manhã nesse sentido. Lembra-me também Manhã Imensa, de Ruy Cinatti, e O Ar da Manhã, de António Gancho”.
Manhã é, então, um indicador no calendário do dia que é a vida. Mas é também uma escolha marcadamente pessoal, carregada de afecto e de sentido. Adília Lopes levanta-se cedo, pelas seis e meia da manhã. Gosta de ir ao café nesses momentos em que ainda lhe é possível observar “a lua e as estrelas”, como diz. Uma reminiscência, talvez, da sua formação científica (estudou Física, uma área que continua a interessá-la). Portanto, aquele período do dia é algo mais do que uma simples fracção no relógio do quotidiano. É a marca do sujeito por trás da escrita, aquele que está por entre as suas palavras e as habita.
História doméstica
“Até aos dez anos não fui boa aluna. Não gostava da escola, estava sempre doente, não ia muito à escola…” As coisas mudaram por volta dessa idade. Adília regista com agrado “as experiências pedagógicas do [ministro da Educação] Veiga Simão.” “Um ensino em que se dava mais atenção à criatividade.” No caso de Adília, as inovações parecem ter resultado, e o seu olhar conhece uma luz suplementar quando se refere a esse período da sua vida. Adília Lopes já contou várias vezes que, em casa, quando era jovem, os pais desligavam a televisão quando alguém lia poesia. Não era um desligar da poesia, de toda a poesia, mas de “uma ideia errada de poesia”, como diz a autora. Na sua família, a prima Maria Lucinda, conforme Adília conta numa crónica – e num poema de Manhã – passou a ser “a Confrangida” graças a um empolamento semelhante. Para clarificar a noção de uma poesia “enfatuada, estereotipada” Adília Lopes cita D. Hélder Câmara, e o seu Um Olhar sobre a Cidade, quando ele fala de uma poesia em que se põe “a mão no coração quando se diz coração”. Era a essa poesia que viravam costas. E é óbvio que a poesia que Adília Lopes escreve está nos antípodas dessas noções fossilizadas do discurso poético.
“Manhã é um livro de história doméstica. É História. É um livro rigoroso, não tem inexactidões.” Salvo em dois casos, pormenoriza Adília. Num dos poemas que compõem o livro, lê-se que a autora pica os dedos com “uma espécie de pistola”, por causa da diabetes. Mas isso não é exacto: Adília fá-lo numa farmácia. Outro caso tem que ver com uma exposição do artista Xana, que a autora situa na década de 80, mas que não sabe precisar se teria visitado nos anos 90. Adília Lopes não tem computador, ou talvez lhe tivesse ocorrido pesquisar na Internet, a confirmar. Usa ainda a Olivetti azul que refere nas suas crónicas. Uma peça “fabricada na Jugoslávia, quando ainda havia Jugoslávia”. As partes da máquina de escrever – um objecto em vias de extinção, senão já claramente extinto –, obtém-nas junto de pessoas amigas, “às vezes em lojas na província”. É nesse vestígio teimoso de outras épocas que passa a limpo os seus poemas. Porque primeiro escreve-os à mão, em cadernos. Escreve todos os dias. Mantém, “desde os doze anos e meio”, um diário em que se aplica quotidianamente. Não se destina à publicação (mas talvez não seja bem assim, como veremos), porque está escrito numa “linguagem privada”. Não que haja nele alguma coisa que não se pudesse ler, como explica, mas porque não se perceberia: “não é uma coisa que se possa comunicar, que se possa divulgar”. Mas chegará a condescender, ainda que com nítidas reservas, que “alguma coisa se poderá publicar”.
Mais adiante, Adília há-de chamar a esses registos do seu dia-a-dia “livros de artista”, por serem objectos belos e decorados. E porque estão ilustrados com desenhos que a autora faz, com canetas Bic. Trabalhos de que fala de forma passageira, quase negligente. Sem que, no entanto, isso esconda o interesse que eles têm para ela. No tocante à possível relação entre desenho e escrita, Adília recorda que o pai, professor de Desenho, tinha um diploma obtido num curso frequentado na adolescência, no qual se podia ler: “Se sabes escrever, sabes desenhar.” Esta parece ser uma formulação que activa reacções nas suas memórias afectivas, mas que também a ajuda a explicar um pouco a génese mais recuada do impulso para a escrita – “Como todas as crianças, comecei por desenhar, mas a certa altura isso já era escrever.” Em Apanhar Ar (Assírio & Alvim, 2010), as ilustrações que acompanham os poemas são da autoria de Adília enquanto (muito) jovem artista. O prolongamento entre as duas linguagens parece uma ilustração da história do seu processo criativo. Adília falará também dos desenhos de Roland Barthes reproduzidos na capa de Roland Barthes por Roland Barthes, para desenhar um paralelo com os seus, por ela descritos como “um pouco automáticos”. Barthes é outra das referências importantes para Adília Lopes, que o citará e o há-de referir mais de uma vez no decurso desta conversa.
“Eu estou sempre a escrever mentalmente. Não é uma coisa que se pare. E ao longo do dia vou escrevendo no caderno.” Adília distingue, ainda que tenha dificuldade em delinear uma fronteira clara, entre essa “coisa mental” e a feição prática da escrita. “Escrevo todos os dias, mas às vezes não há aquele momento de fulgor. Não há… inspiração. As pessoas hoje acham piroso chamar-lhe inspiração, mas há inspiração. É a musa. A Sophia dizia: a musa. Às vezes não acontece o poema.” Adília está a citar Sophia, mas também Pessoa. Procura resposta para o que lhe viaja na mente na Arte Poética de Dual, em que Sophia cita Fernando Pessoa quando este diz: “Aconteceu-me um poema”. Sophia é uma referência tão constante quanto, porventura, surpreendente. “A poesia não explica: implica.” é uma das primeiras frases que nos diz. E pertence a Sophia.
Rapidamente se fica a perceber que a tranquilidade e o sossego são alguma coisa a que a autora dá uma grande importância. Mas que isso não faça pensar em excesso de pacatez. Não faltam contradições nas aparentes certezas que estes poemas põem em evidência. “Os poemas são impessoais. É claro que são autobiográficos…”, concede Adília Lopes. Mas o que parece incongruente é, na verdade, explicável por uma dinâmica específica à sua concepção de poesia. “A partir dos 23 anos, consegui escrever poemas que se aguentam. Que podem ver a luz do dia, podem ser publicados. E isso não é um desabafo, não é uma inconfidência.” O que é outro aspecto em que a poesia se separa do diário que mantém há mais de 40 anos. E a marca da impessoalidade que a autora defende para a sua poesia.
A vida e o verso
Quando lhe perguntamos pelas diferenças, se as há, entre a poesia que hoje escreve e a que publicava há 30 anos, o paralelismo que Adília Lopes encontra é interessante. E revelador. Porque indicia uma identificação inseparável entre a matéria da vida e a substância do poema. A relação parece abstrusa, indirectamente achada, mas depressa se percebe que Adília experimenta, de facto, a poesia como se, realmente, fosse impossível separá-la da vida: Os Cadernos de Poesia diziam: ‘A poesia é só uma.’” Pronuncia claramente: “O importante é escrever a poesia, vivê-la.” Alexandre O’Neill, outro dos seus autores, fornece-lhe oportunidade de tentar explicar-se: “Conforme a vida que se tem o verso vem”. Mas de novo Adília quer seguir outro caminho que não o óbvio. Desconcerta, mesmo que não expluda; diz o que não se espera, ainda que aquilo que diga não chegue a extravasar qualquer limite: “Os intelectuais endeusam o livro, as obras. E isso não é o mais importante. O mais importante é o amor.”
“Escrever um poema/ escavar uma toca”, escreve em Manhã. Não é uma poética, é “um lema de vida”. Uma defesa não contra o esquecimento – que dificilmente lhe acontecerá, com a sua memória digna de fábula –, mas contra a perda de inocência. Quando lhe lembramos uma passagem de Manhã como “Tenho 54 anos e continuo a pensar como quando tinha 4.”, Adília apressa-se a clarificar. O que defende é a possibilidade de “ser infantil no bom sentido.” A referência à Condessa de Ségur é inevitável. “Na vida há muita perversidade, e os livros dela ajudam a lutar contra essa perversidade, a defendermo-nos contra a perversidade…” Num exercício de memória e de abstracção em que se percebe não haver muito esforço, propõe: “Na infância, há muita perversidade, mas não é só isso. Há um mundo na infância que me fascinava… O enxoval da boneca da Margarida de Rosburgo…” Adília transcreveu o conteúdo desse enxoval no final de O decote da dama de espadas. Embora tenha utilizado a versão original, a sua intenção era recorrer a uma tradução antiga, como as que leu na infância, “porque as tradutoras dos livros da Condessa de Ségur tinham um português muito engraçado…” Adília faz reviver esses episódios da sua infância com uma nitidez impressionante. Como aquele em que viajava com a mãe de eléctrico, da Baixa para a Estefânia.
“Foi a seguir ao Martim Moniz, na Rua da Palma. Havia, naqueles eléctricos, uma fresta entre a janela e o parapeito que dava para a rua. E foi aí que caiu o biberão da boneca.” Adília, é bom que se note, a bem da exactidão que ela própria preza, não diz, nem escreve, “biberão”, mas “biberon”. Adília já não vai tanto à Baixa. “Já não há os eléctricos…” Antigamente agradava-lhe andar de metro, e continua a gostar de autocarros, mas como “há tempo” não os utiliza, não se sente à vontade. Não são lugares que tenham a paz que aprecia no seu bairro. Adília não conduz, nem tem carta – como diz algures: “nem automóvel, nem telemóvel”. Também anda a pé. Curiosamente, um dos seus livros anteriores chamava-se Andar a pé (Averno, 2013), embora, nessa recolha, a expressão se referisse menos à locomoção do que a outras dimensões advindas das possibilidade da deslocação no espaço. Quando Adília Lopes se volta para a rua, parece que os eléctricos voltam a subir e descer aquela rua. E que há um ruído de atritos e poeiras que sobe de novo em espirais sonoras até aos andares mais altos dos prédios em redor.