A infantilização de um país
Certas analogias à esquerda são de molde a assustar qualquer um.
Os defensores do Syriza costumam criticar fervorosamente a proliferação daquilo a que eles chamam “caricaturas da Grécia”: as cabeleireiras e os trombonistas que se reformam aos 53 anos porque a sua profissão é considerada “árdua e insalubre”; os 45 jardineiros contratados por um hospital público para tomar conta de meia dúzia de árvores; o Instituto para a Protecção do Lago Kopais, seco desde 1930; ou, para citar a famosa peça de José Rodrigues dos Santos para a RTP, os falsos paralíticos que se passeiam a pé diante da casa do ex-ministro da Defesa grego para “receber mais um subsidiozinho”.
Ora, eu não duvido por um momento que estes coloridos exemplos possam contribuir para formar um retrato simplista da Grécia, certamente injusto para muitos gregos trabalhadores. Só que o inverso é igualmente verdadeiro: o Syriza e a sua vasta trupe de admiradores utilizam a mesma demagogia para criticar a posição alemã, colocando bigodinhos em Merkel, recuperando histórias de uma guerra que acabou há 70 anos e considerando a Alemanha a grande vilã da crise – como se ela fosse a encarnação da bruxa má da floresta, que atraiu os pobres gregos para a sua casa de chocolate, para poder aí praticar as maiores malfeitorias.
De facto, entre os mais impressionantes resultados da crise está esta espécie de infantilização dos países em dificuldades: não há políticas historicamente erradas, nem governos responsáveis pelo endividamento excessivo, nem eleitorados que tenham dado os seus votos a maus partidos – há apenas pobres vítimas de tenebrosos esquemas neoliberais. Para quê darmo-nos ao trabalho de assumir os erros, se podemos inventar tão bonitas teorias da conspiração? Para a esquerda europeia pró-Syriza, é como se a Alemanha e os seus bancos andassem a preparar um assalto aos países da periferia desde tempos imemoriais.
E, no entanto, basta pesquisar um pouco para encontrarmos as incoerências dessa tese. Notícia de Junho de 2011: “60% dos alemães consideram que o país tem de ajudar a Grécia a recuperar da crise de dívida soberana em que se encontra, gostando ou não.” Isto foi escrito há três anos e meio. Ou seja, já houve uma época em que a Alemanha defendeu a solidariedade para com os gregos. Simplesmente, essa confiança foi-se esfarelando com as sucessivas falhas nos pacotes de reformas. O esquematismo do grego mandrião e o simplismo de tantas abordagens em relação aos PIIGS é, em boa medida, uma consequência das dificuldades na implementação dos programas da troika. Não é bonito. Mas é compreensível.
Infelizmente, há uma abordagem da crise, muito popular, que é de tal forma desresponsabilizadora que convida às mais tristes simplificações. Certas analogias à esquerda são de molde a assustar qualquer um – ainda ontem, neste mesmo espaço, Rui Tavares ia buscar Versailles e o pós-Primeira Guerra Mundial para falar da reunião do Eurogrupo. E eu pergunto: mas houve alguma guerra na Grécia nos últimos anos de que não tivemos conhecimento? O seu défice deve-se a alguma sucessão de calamidades? Senhores: a Alemanha foi arrasada na década de 40, reunificada na década de 90, não tem petróleo e é o motor económico da Europa. Se não queremos ser caricaturados e simplificados, seja na Grécia ou em Portugal, convinha começar por acabar de vez com um discurso de tal forma desculpabilizador que nos transforma a todos em cidadãos inimputáveis. Se é esse o caminho único para a salvação da Europa, por favor, deixem-me circular em contramão.