Em busca da história não escrita da libertação de Angola
Durante mais de cinco anos uma equipa angolana percorreu o país para registar em vídeo as histórias, na primeira pessoa, de quem viveu e lutou contra o colonialismo português.
Os angolanos Mário Bastos e Jorge Cohen têm ambos 28 anos, nasceram, portanto, no final da década de 1980. O que sabiam sobre os anos que levaram à independência do seu país, faz 40 anos a 11 de Novembro, era “nada”, bem, “quase nada”. Na escola aprendem-se umas quantas datas históricas sobre a Luta de Libertação Nacional, como é conhecido no país o período que vai de 1961 a 1975, os nomes de algumas figuras históricas e políticas, mas é sobretudo uma história institucional, muito seca, muito sem vidas. Mas como era viver sob o domínio colonial português? Como eram as vidas das pessoas? Como se fez a resistência? Como era a vida dos guerrilheiros no mato? O que comiam? O que vestiam? As respostas a estas e outras perguntas não estão em manuais escolares angolanos mas são possíveis de encontrar nas 894 horas de filmagens que resultaram das entrevistas feitas a 671 pessoas, durante os cinco anos que durou o megaprojecto documental Angola, Trilhos da Independência.
Arrancou a 5 de Janeiro de 2010 pelas mãos da Associação Tchiweka de Documentação, criada em 2006 para receber o espólio documental de um dos históricos da independência de Angola e do MPLA, Lúcio Lara, filho de mãe angolana e pai português. No mato, os guerrilheiros angolanos que lutavam contra as tropas portuguesas tinham um nome de guerra, Tchiweka era o seu, é o nome da aldeia (na província do Huambo) de onde era originária a família da mãe. O objectivo principal da Tchiweka, que fica em Luanda, é a recolha, conservação e divulgação de materiais relacionados com a luta de libertação do país.
Nos rés-do-chão desta vivenda de dois andares, no bairro de Alvalade, próximo de uma zona de embaixadas da capital angolana, estão catalogados milhares de documentos, entre fotografias, cartas, documentos históricos, como o manifesto original do MPLA, de 1956. Mas também panfletos de propaganda, tanto os que na época eram distribuídos pelo exército português (“Apresenta-te à tropa e serás bem tratado” ou “Onde está a independência que os vossos chefes andam a prometer desde 1961? Não acredites em tal mentira”), como pelo MPLA (“Soldado português do exército colonial. Abandona os estrangeiros. Deserta” ou “Soldado português. A guerra colonial é um crime que te obrigam a comer mas que só tu… Pagarás com a tua vida”).
Há correspondência pessoal de Agostinho Neto (o primeiro Presidente angolano), há, por exemplo, um livro que reúne cartas da guerrilheira do MPLA Deolinda Rodrigues, raro por ser de uma mulher, que, em 1967, escreveu: “A cruzar o rio Luvu, surgiram dois bombardeiros tugas. (…) Seguiu-se a travessia em corda e pisei Angola depois de quase oito anos de ausência: beijei o solo.” Acerca da repressão da PIDE sobre os angolanos, pergunta: “E tu, Deus, que tens visto tudo isso, todo esse sofrimento, podes mesmo dormir? Ficas mesmo tranquilo? Pois, estou pasmada contigo, Deus.”
Na sala de consulta da associação há uma dezena de secretárias para os leitores, que são sobretudo investigadores e estudantes. Ali está muita documentação em papel, muita história, mas, ao mesmo tempo, tão pouca.
“Estamos num país africano. Onde a tradição escrita ainda não tem muita força”, diz Wanda Lara, filha de Lúcio Lara, psicóloga tornada documentarista pela história da família — “alguém tinha de o fazer”. Explica que esta é, desde logo, uma questão cultural — “a importância que se dá à escrita em África não é a mesma do que na Europa”. Não por acaso, “as primeiras perspectivas de África são de europeus”, são as que ficaram escritas, nota. Ao mesmo tempo, “em África, muita gente é analfabeta”.
Depois, as próprias “condições da luta anticolonial” — feita de clandestinidade, de itinerância, de locais efémeros, alguns campos de guerrilheiros eram feitos de paus, paredes de capim, telhados de folhas, como se vêem em fotografias da época — “fizeram com que se perdessem fotos e objectos durante a guerra”.
Ao mesmo tempo, à luta pela independência, veio colar-se o que Wanda Lara designa como “a segunda guerra”, ou seja, a guerra civil que, logo em 1975, começou, opondo três movimentos independentistas (MPLA, UNITA, FNLA). Aos 14 anos da luta da libertação, o país passou quase três décadas de uma guerra civil que só terminou em 2002. Neste outro conflito, ainda “mais gente perdeu objectos, documentos. As instituições perderam registos. Ficou então o país com esta parte do seu percurso histórico muito por registar”.
“Temos este acervo connosco, mas muita gente teria coisas a dizer e não têm muitas coisas escritas. Há centenas de pessoas que foram presas que não tinham o hábito de escrever, os que tinham perderam.” Uma rara excepção é o escritor Luandino Vieira, que tem vários escritos do tempo em que esteve preso no campo prisional do Tarrafal, em Cabo Verde.
“Os anos estão a passar e muitas pessoas que estiveram envolvidas nunca falaram, não têm como se expressar. Sentimos essa pressão. ‘Vocês não ouviram x e y.’ Já passaram 40 anos. As pessoas sentem necessidade de contar a sua versão do que viveram.”
Daí a necessidade de, como associação documental, se terem de lançar em novos voos, com novas ferramentas. “O multimédia permite dar importância à oralidade que em África é mais valorizada do que a escrita.”
Subamos então ao primeiro andar da associação, o estúdio onde trabalham Jorge Cohen, produtor do projecto Angola, Trilhos da Independência, e Mário Bastos, o realizador. O coordenador e mentor do projecto é Paulo Lara, general e filho de Lúcio Lara, que não poderá estar hoje para explicar o projecto. Deixou a tarefa a cargo destes dois jovens da Geração 80, o nome da produtora que trabalhou durante cinco anos no projecto que terminará este ano com um documentário que será estreado no dia em que se assinalam os 40 anos da independência, e que já tem título escolhido: Independência.
O desafio é transformar quase 900 horas de filme em 1h45. Mais do que isso, o objectivo é criar um documentário destinado aos jovens da geração deles e mais jovens que desconhecem quase tudo sobre este período da história do país. Depois, espera-os o longo trabalho de organização do material que vai estar acessível ao público, ainda sem data.
Mário Bastos constata que se há algumas pessoas, ex-combatentes e pessoas que viveram o período colonial, que falaram, pelo menos em família, desse tempo e do que viveram, outros nem tanto. “Muitas são memórias vividas mas não contadas.” “Se eu contar aos meus filhos que houve pessoas que comeram lama com jindungo [malagueta], eles vão achar que é mentira”, contou à equipa o guerrilheiro Miseraque Boa dos Santos, nascido em 1945.
Mas a razão porque muita dessa vivência ficou circunscrita à geração que a viveu tem, às vezes, que ver com o “não se dar importância de ter vivido um momento histórico. Foi mais uma guerra”, constata Mário Bastos.
Nos cinco anos em que decorreu o projecto, já morreram 20 dos entrevistados, a média de idades anda pelos 60-70 anos. A esperança de vida em Angola está calculada em 51 anos. Jorge Cohen e Mário Bastos dizem que cada notícia de morte de um entrevistado os lembra da urgência da tarefa, desta “luta contra o tempo”.
Uma das pessoas que morreram entretanto foi João Vieira Lopes, de quem foi recolhido o depoimento mais longo: 12 horas de gravação, quando a média é de duas horas, recorda o realizador Mário Bastos. Foi também, na opinião dos dois, um dos mais marcantes. Este antigo guerrilheiro fez parte da geração que, após concluir os estudos no liceu em Luanda, embarcou para Portugal para ir para a faculdade. Em Lisboa, foi presidente da Casa dos Estudantes do Império, criada para perpetuar a dimensão imperial do Portugal do Estado Novo, mas que acabou por ser um viveiro de dirigentes independentistas que chegaram ao poder nas ex-colónias. No seu testemunho, recolhido em 2010, conta como, depois do início da luta armada em Angola (a 4 de Fevereiro de 1961), foi um dos que planearam a fuga de estudantes africanos que viviam em Portugal. Falou da dificuldade “da selecção”, de escolher quem ia e quem ficava. “Uma boa parte de nós estava praticamente no último ano dos cursos superiores... Alguns de nós já tinham mulheres e filhos. Largar aquilo para um desconhecido... Era muita responsabilidade arrastarmos toda aquela gente para fora e depois o que fazer deles?” Em Junho de 1961, saem de Portugal cerca de 100 jovens das ex-colónias portuguesas, em duas acções que os levaram a atravessar o rio Minho e todo o Norte de Espanha rumo a França. Fez parte deste grupo, por exemplo, o ex-Presidente moçambicano Joaquim Chissano. O episódio ficará para a história como a “Fuga dos 100”.
Às entrevistas planeadas juntavam-se muitas espontâneas, de pessoas que conheceram nas viagens e que queriam contar as suas experiências. Quando chegavam às povoações (63% das entrevistas foram fora de Luanda), a equipa convocava memórias: montavam uma tela gigante onde projectavam imagens desse tempo. Era o chamariz. Percorreram de carro mais de 20 mil quilómetros.
De forma espontânea, surgiu também uma forma diferente de as pessoas darem a conhecer esse tempo: representações teatrais. “As pessoas não têm em casa fotografias desse tempo, os angolanos não tinham máquinas fotográficas.” Nos excertos de vídeos disponíveis no site do Trilhos, é possível ver recriações de combates de homens que foram guerrilheiros, e que agora são idosos, empunhando o que parecem ser paus de vassoura, a gritar ferozmente contra um inimigo passado. Mário Bastos explica que estas representações são “a forma de as pessoas transmitirem conhecimento. Fazer peças de teatro é como ter alguém que nos mostra uma foto e diz ‘isto era assim’”.
Nesta amostra de entrevistados, estão ex-combatentes. Um, da zona do Mayombe, conta que a fome no mato os obrigava a comer até tartaruga, ou há quem descreva o andulo, vestuário feito a partir de casca de árvore, que os guerrilheiros faziam para se protegerem do frio no mato. Tendo a associação Tchiweka fortes ligações ao MPLA, o projecto conta com o apoio institucional do Governo de Angola, respondem que houve uma tentativa de recolher testemunhos das várias partes mas, revelam os números, há uma desproporção: “Em 671 entrevistados, mais de metade foram do MPLA, 105 foram da FNLA e 53 da UNITA. Os restantes foram de outras organizações ou pessoas independentes”, respondem.
Também há pessoas que não combateram, mas que têm coisas a dizer sobre como era a vida na altura. A camponesa Marta Miguel, nascida em 1943, surge em vídeo a dizer como, com 15 anos, foi escolhida para trabalhar na colheita de café e como as mulheres “levavam palmatórias por não encherem um saco de café por dia”. Depois do início da luta armada, Marta acaba por seguir com o marido e os filhos para as matas para se refugiar dos ataques aéreos: “Os portugueses atacavam muitas vezes... Não conseguíamos acartar água, não conseguíamos arranjar comida. Muitas vezes, só conseguíamos dar cuspo aos nossos filhos.” Soube da independência pela rádio. Ou o testemunho de um luandense que lembra a divisão urbana dentro de Luanda, com “o bairro dos indígenas”, e de como os “chauffeurs de machimbombos [autocarros] tinham de ser brancos”, nem os mulatos podiam sê-lo, ou de como alguns colonos obrigavam as mulheres a cortar as tranças por ser considerado “cabelo indígena”.
E, não por acaso, o início do que vai ser o documentário, ainda temporário, arranca com imagens de camponeses nos campos a colher algodão. Em Portugal, o 15 de Março de 1961 marca o tiro de partida da guerra colonial, o momento histórico que levará Salazar a declarar “para Angola, rapidamente e em força”. Nessa data, a União das Populações de Angola (UPA) matou centenas de portugueses e africanos em fazendas no Norte de Angola.
Já em Angola, a revolta da baixa de Cassange (no Norte de Angola) é considerada o momento simbólico na luta contra o colonialismo por excelência, e é o Dia dos Mártires da Repressão Colonial. Foi a 4 de Janeiro de 1961 que ocorreu um levantamento de trabalhadores da Cotonang protestando contra as condições de trabalho impostas por esta companhia algodoeira. Os protestos são reprimidos pelo exército português e resultam num massacre com centenas de mortes.
O que este trabalho permitiu foi também mapear outros locais históricos não tão famosos. Nas imagens, vê-se a chegada da equipa a uma antiga base de guerrilheiros da qual só resta vegetação. Em sítios sem qualquer vestígio físico, cruzaram vários testemunhos e foi a equipa do Trilhos a registá-los em coordenadas GPS. Para chegarem a alguns deles, tiveram de percorrer a pé cerca de uma centena de quilómetros. Por exemplo, a equipa foi encontrar gravado no tronco de uma árvore um dos poucos vestígios do quartel-general criado pelo primeiro grupo organizado de guerrilha, o Destacamento Cienfuegos. Ainda se lê no tronco da arvore as letras Brnó (cidade da antiga Checoslováquia onde treinaram alguns guerrilheiros). O campo “foi destruído em 1968 depois de uma grande operação militar do exército português”, informa o projecto.
Jorge Cohen nota que “as pessoas não podem preservar coisas que não conhecem. Muitos não têm vestígios, eram estruturas frágeis”. “Agora, as pessoas podem lá ir, mesmo que já não haja lá nada para ver.” Esta geografia da independência levou-os a assinalar cerca de 80 sítios por toda a Angola, que vão “desde bases guerrilheiras, locais de encontros clandestinos, casas onde ficaram hospedadas algumas figuras depois de fugas, locais de treino militar, bases militares, prisões”.
Mário Bastos refere que se fala muito do campo do Tarrafal, mas que “não se fala do campo prisional de São Nicolau, localizado no Namibe”, entre o deserto e o mar, onde estiveram presos muitos angolanos, alguns durante quase todo o período de luta pela libertação. Frederico Colombo, que lá esteve entre 1966 e 1969, contou ao Trilhos que “tirar uma banana da árvore sem pedir autorização ao guarda” era uma das transgressões que no campo podia resultar “em porrada”. Outro ex-preso caminha pelo sítio onde eram as celas conhecidas como “as geleiras”, ou lembra o trabalho pesado que os presos faziam nas salinas, carregando o sal na cabeça e nas costas.
Os testemunhos incluem pessoas que lutaram mas não necessariamente com armas. A resistência passou por terem estado presos às vezes dez anos, outras estiveram no exílio durante todo o período. Por isso também há testemunhos recolhidos, por exemplo, em Cuba, no Gana, em França, Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em Portugal.
Mário Bastos e Jorge Cohen defendem que “a guerra do ponto de vista português está mais feita. Esta é a perspectiva angolana”. Como olham hoje os angolanos para esta guerra e para o antigo inimigo? “Com naturalidade, não existe rancor. Fala-se desse período como Portugal colonial e não como ‘os portugueses’. Acho que há essa distância. Gostávamos muito que este documentário fosse visto em Portugal.”