Belas imperfeições para Don Giovanni

O atelier de ópera da Metropolitana revelou alguns jovens talentosos cantores portugueses em início de carreira. E logo começando pelo mais difícil: fazer o Don Giovanni de Mozart.

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A Metropolitana realizou o seu segundo atelier de ópera, desta feita propondo a montagem de Don Giovanni, de Mozart, uma das óperas mais extraodinárias do compositor na sua colaboração com o libretista Lorenzo Da Ponte. A iniciativa da criação de um atelier de ópera é em si mesma louvável, abrindo um espaço de criação e estudo que culminou na apresentação pública realizada no sábado (e no domingo, com duas outras cantoras, Liliana Nogueira e Sara Afonso), com o objectivo de "proporcionar a jovens cantores, ainda estudantes ou em início de carreira, o enriquecimento das suas qualidades artísticas e técnicas, bem como da sua experiência em palco". A versão foi apelidada de "semicénica", no sentido em que se trata de uma encenação parcial, feita com poucos meios. Ainda assim, estiveram lá todos os elementos teatrais que permitiram uma apresentação que é muito mais do que "brincar à ópera".

A orquestra Metropolitana, visível em cima do palco (e não escondida num fosso), ajudou curiosamente a entender melhor em que medida aquela música tem teatro lá dentro. Tudo ali é teatro. A orquestra dirigida por Pedro Amaral começou muito bem, com uma esplêndida abertura. Mas nalguns números o maestro puxou para tempos muito lentos, trazendo problemas aos cantores, como por exemplo logo na primeira cena Notte e giorno faticar em que, apesar do tempo, o baixo José Corvelo (Leporello, o criado de Don Giovanni) se aguentou muito bem. O famoso dueto Là ci darem la mano podia ter tido mais leveza numa cena em que Don Giovanni e Zerlina se seduzem mutuamente, mas com ela a dizer-nos (como quem pensa para si mesmo) que quer... e não quer. Uma cena-chave dos conflitos de corpos e ideias que existem em Don Giovanni.

Mas a produção foi globalmente muito conseguida: lembremos que foi um desafio difícil e importante para a experiência de jovens cantores. Don Giovanni foi representado por Jorge Martins, o único cantor convidado, que não só canta muito bem como possui já uma grande estaleca de palco, tendo sido decisivo para o sucesso desta meia-encenação. Mas do lado dos cantores participantes no atelier houve também óptimas surpresas, como por exemplo o barítono André Henriques, que acumulou o papel de Masetto com o da figura fantasmagórica do Comendador e mostrou uma voz segura com um belo timbre. Vamos ouvir falar dele no futuro seguramente. Na produção de sábado cantaram ainda Alexandra Bernardo, que foi uma Donna Anna convincente, com uma boa voz de soprano dramático que só precisa de controlar melhor; Catarina Archer, soprano mais lírica que deu muito bem corpo e voz à figura feminina mais contraditória da ópera (Donna Elvira); Camila Mandillo, que foi capaz de construir uma Zerlina ingénua mas conscientemente sedutora e, para além de José Corvelo (um óptimo Leporello), houve ainda o tenor Carlos Monteiro (Don Ottavio), que nem sempre controlou bem a sua afinação, mas ganhou confiança no segundo acto. Cantores muito jovens, com futuros à sua frente, que foram capazes de ajudar a pôr de pé uma das mais complexas e fascinantes óperas de Mozart.

Já correram rios de tinta a propósito de Don Giovanni, provavelmente a mais ambígua ópera do compositor, que se presta a leituras muito diversas. Porque ali toda uma sociedade se encena, entre a política e a sexualidade, entre as diferenças de classes e as diferenças de género, entre corpos e ideias - as ideias "novas" e as ideias "antigas". E também porque Don Giovanni sobreviveu bem para lá do seu tempo, encontrando novas formas de se encenar, novas leituras, novas audições. Ver jovens cantores a fazê-la outra vez com imperfeições (e não são belas as imperfeições?), entusiasmo, sentido de humor e intensa presença é admirável. Para não dizer emocionante: aqui, ali, acolá. Porque, mesmo tudo a fingir, é tudo verdade na ópera.

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