Doze corpos para dançar a não desistência de Ulisses
Após a aclamação da estreia em França, Tânia Carvalho apresenta A Tecedura do Caos finalmente em Portugal – este sábado, no encerramento do GUIdance, em Guimarães, a 20 e 21 de Fevereiro, em Lisboa. Doze bailarinos em palco movem-se com a persistência de Ulisses na Odisseia de Homero.
Pegar na monumentalidade épica da viagem de regresso a Ítaca de Ulisses, finda a Guerra de Tróia, e fazer disso um espectáculo coreografado “era um bocado demais”, lembra-se de ter pensado. Mas depois, libertando-se do peso de qualquer adaptação e tomando Odisseia apenas como ponto de partida, encontrou o equilíbrio necessário para poder trabalhar sobre ideias retiradas do texto sem a preocupação de que pelo palco passe uma narrativa inteiramente fiel ao livro.
De todas essas ideias, nenhuma outra teve tanto impacto em Tânia quanto a de não-desistência. “Trabalhei muito nesse lado de não desistir quando se tem um objectivo traçado. E usei também uma comparação com as bailarinas”, explica, “porque elas estão sempre a repetir o mesmo movimento para ficar perfeito. Isso é o que mais me fascina no livro: acontece tudo, mas Ulisses não desiste, tal como Penélope não desiste de esperar por ele.” Este espelho entre a linguagem dos bailarinos de A Tecedura do Caos (este sábado em estreia nacional no GUIdance, em Guimarães; 20 e 21 de Fevereiro no Teatro Maria Matos, em Lisboa) e Odisseia é ainda explorado sob a forma de uma coreografia extremamente cansativa a nível físico, em que aos bailarinos é também pedido que resistam em palco e “lutem contra a falta de forças”.
Foi uma das respostas emocionais que Tânia Carvalho procurou dentro do seu discurso, uma vez que não pretendia montar em palco uma narrativa linear – até porque a linearidade já se encontra ausente de Odisseia – nem oferecer cenas facilmente reconhecíveis no livro. Muito embora os segmentos que considera essenciais na história se infiltrem na peça, tudo obedece a um mapeamento mental da coreógrafa dificilmente descodificável pelo público – e preparado com muito tempo de avanço numa espécie de story board usado pela criadora para anotar minuciosamente as ideias, da estrutura até cada gesto. A relação do público com a peça deve ser, antes de mais, estabelecida pelo movimento e pela carga emocional transportada pelos bailarinos.
É por isso, aliás, que reconhece que as primeiras apresentações em França “correram melhor do que estava à espera”, receosa que estava das reacção a não se tratar de uma transposição evidente de Odisseia para o palco nem pretender competir com o carácter épico e desmedido da obra de Homero. Mas também porque percebeu que se criava uma expectativa de que repetisse o universo artístico de Icosahedron (2011), apresentada igualmente em França, e viu-se forçada a repetir que nada em A Tecedura do Caos funcionaria como extensão dessoutra coreografia. A ligação, ainda assim, é uma fatalidade – foi precisamente devido a Icosahedron, peça arrebatadora para 20 bailarinos, que a Biennal a convidou para esta empreitada. “Pensaram que poderia fazer uma peça com uma imagem poderosa, com muitos bailarinos e uma construção coreográfica complexa”, diz Tânia Carvalho.
Uma das premissas residia, assim, num número alargado de bailarinos – “entre dez e 12, escolhi logo os 12, quanto mais melhor”, confessa, pela rara oportunidade de as contas orçamentais permitirem trabalhar com grupos tão numerosos.
Este elenco alargado permite-lhe também cumprir com um gosto particular em construir uma coreografia como se operasse peças de um jogo em que manipula os movimentos dos bailarinos – e quanto mais peças, naturalmente, mais desafiante é operá-las em simultâneo.
Sobretudo porque o lado controlador da coreógrafa a inibe de deixar muito espaço livre para improvisação. Pelo contrário, aproveitando ao máximo o tempo de trabalho com os bailarinos, quando os ensaios começam Tânia Carvalho tem toda a obra marcada ao pormenor. Trata-se “apenas” de dar vida a uma coreografia que, na sua cabeça, está já imaginada do primeiro ao último movimento e guarda simplesmente alguma elasticidade porque “os corpos das pessoas são sempre surpreendentes”.
“Embora haja sempre partes nas minhas peças que parecem uma confusão tremenda”, admite, “está tudo estruturado.” O caos é, por isso, tecido ao milímetro.