Lars von Trier é a maior criação de Lars Trier

Lars von Trier começou desde cedo a construir a personagem do grande artista. Lars von Trier é a maior criação de Lars Trier. Esta é a tese que vai defender no sábado, no Museu das Artes de Sintra, Peter Schepelern, que foi seu professor.

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Segundo Schepelern, Lars von Trier começou desde muito cedo a construir a personagem do grande artista, do auteur. A sua tese é de que Lars von Trier é a maior criação de Lars Trier (Schepelern raramente usa o Von quando se lhe refere)
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Para o professor dinamarquês, a grande ruptura no cinema de Lars von Trier dá-se quando decide colocar a mulher no centro dos seus filmes: "Ondas de Paixão"

Assim se descreve o realizador, cuja opinião sobre a natureza humana é reconhecidamente pessimista, sempre pronto a ver os defeitos, crueldade e fealdade de todos. Um olhar extensível à sua pessoa. Von Trier não é particularmente amável consigo mesmo, falando amiúde dos seus ataques de ansiedade e da depressão que o assola quase constantemente. Quando não está entretido nestes exercícios de auto-depreciação, tem tendência para dizer a coisa errada na hora errada. Sobre o assunto errado. 

Ia já para a sua terceira longa-metragem, Europa, quando soube pela boca da mãe moribunda que o seu pai não era o judeu Ulf Trier mas, sim, Fritz Hartmann - cuja família era de origem alemã -, com quem ela havia mantido uma relação extra-conjugal. Era deste assunto que von Trier falava na conferência de imprensa de Melancolia no Festival de Cannes em Maio de 2011, respondendo à pergunta de uma jornalista sobre o seu óbvio fascínio pela Alemanha nazi. No entanto, von Trier não se ficaria por aqui. Perante o olhar aterrado de Kirsten Dunst (a dada altura tenta impedi-lo de continuar) e o sorriso de Stellan Skarsgard (que o conhece de ginjeira), afirmou compreender e até simpatizar com Hitler. Ao perceber ter metido a pata na poça (já ninguém se estava a rir), ainda tentou dar a volta à situação, dizendo não concordar com a Segunda Guerra Mundial e o extermínio dos judeus. Mas, verificando já não ser possível, atirou um "está bem, eu sou nazi!" e, quando outro jornalista lhe perguntou se tencionava fazer filmes de maior dimensão, disse "nós, os nazis, temos tendência para as coisas em grande escala". Finalmente, propôs uma solução final para os jornalistas. 

Para quem ouvir as declarações, é óbvio que o realizador estava praticar um pouco do seu humor corrosivo e "politicamente incorrecto". De resto, o seu pai biológico integrou a resistência anti-nazi durante a ocupação da Dinamarca e a equivalência entre alemães e nazis é um indício de que tudo não passou de uma piada (e só se pode duvidar do gosto da mesma). Contudo, a polémica instalou-se com a rapidez e ligeireza garantidas pela internet, levando o festival - no qual von Trier e a sua obra tinham sempre encontrado apreço e abrigo (Dancer in the Dark foi Palma de Ouro em 2000) - a declará-lo persona non grata, apesar dos vários pedidos de desculpa. 

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Peter Schepelern

"É a sua típica atitude sarcástica e irónica em relação a tudo. Esta questão do Hitler em Cannes tem a ver com o facto do Trier ter total à-vontade para fazer e dizer as coisas mais provocadoras na Dinamarca. Mas quando se está perante o mundo inteiro, incluindo a internet, não se devia ser sarcástico em relação ao Holocausto. Não é boa ideia. Para ele, foi apenas uma reflexão, um pensamento irónico, e, de repente, ouve-se por todo o mundo que Lars von Trier estava a defender Hitler. Ele só disse que compreendia a tenacidade de Hitler em fazer com que a sua visão se concretizasse. Da maneira que se pode comparar um ditador com um realizador. Era aí que ele queria chegar", diz Peter Schepelern, seu professor na Universidade de Copenhaga em finais dos anos 70.

"Nessa altura, era só Lars Trier. O Von foi inventado por ele, como uma piada. Ele era um jovem sarcástico, vestido de preto. Nessa altura havia muitos jovens sarcásticos vestidos de preto, mas percebemos que ele era diferente. Não diria um aluno extraordinário. Na verdade, nunca fez um exame, nunca escreveu uma tese, ia a algumas aulas. O seu principal motivo de interesse para estar na Universidade era encontrar outros jovens entusiastas do cinema que o pudessem ajudar a fazer os seus filmes. Era algo que ele sabia desde o início: o cinema é um trabalho colectivo. Ele seria, é claro, o grande artista, quem comandava as tropas."

O von do Lars Trier
Peter Schepelern vai estar no sábado (dia 14) no Museu das Artes de Sintra a falar sobre a vida e obra do cineasta dinamarquês, a propósito da homenagem que o Festival Córtex lhe está a dedicar - na quinta-feira, na sessão de abertura do festival sintrense, foram apresentadas a curta-metragem Nocturne, de 1980, e a média-metragem Befrielsesbilleder (traduzida, em inglês, por Images of a Relief), de 1982. Na palestra intitulada The Making of Lars von Trier, Schepelern vai ainda mostrar excertos dos filmes de adolescência de von Trier, que aos dez anos já se preocupava com questões tão pueris como o fim do mundo. 

Segundo Schepelern, Lars von Trier começou desde muito cedo a construir a personagem do grande artista, do auteur. A sua tese é de que Lars von Trier é a maior criação de Lars Trier (Schepelern raramente usa o Von quando se lhe refere), para qual a mãe terá ajudado - na tal confissão no leito de morte, a mãe acrescentou que lhe tinha tentado arranjar uns bons "genes artísticos" (na família Hartmann, havia compositores e músicos). "Ele não era o rapaz modesto que entra no mundo do cinema e gradualmente vai aprendendo e finalmente sai-se com algo interessante. Quando ele veio para a Universidade com vinte anos, percebia-se que desde sempre tinha essa vontade de ser um artista. Escreveu romances, pintou, tentou formar uma banda. Trabalhava intensamente na ideia de querer criar arte. Quando acrescenta o von ao seu nome está a construir uma persona do jovem e misterioso novo talento do cinema dinamarquês, acima do social-realismo mais comezinho, do humanismo. Ele tem uma dívida em relação a [Carl Th.] Dreyer. O próprio Dreyer nunca se encaixou no cinema dinamarquês, sempre foi um pouco distante, com as suas ideias estranhas. Trier identificou-se com ele."

Esta identificação com Dreyer originou mais um episódio polémico, quando no centenário do nascimento do realizador de A Palavra levou uma equipa de televisão ao cemitério onde este está enterrado e se ajoelhou junto à sua campa rezando pela sua ressurreição em nome da salvação do cinema. A mesma vontade de purificar o cinema levá-lo-ia à redacção do Manifesto Dogma 95, juntamente com Tomas Vinterberg, um conjunto de regras a aplicar na realização de filmes futuros, que incluíam a proibição do uso de iluminação artificial, tripé e banda sonora não diegética.

"O Dogma foi uma espécie de auto-punição. Uma das regras, penso que a última, é a do realizador não poder assinar os seus filmes. Se se é novo, não é problema muito grande, mas quando se é o grande Lars von Trier, é muito doloroso para o ego. Ele gosta da ideia, o conceito de castigo está presente em toda a sua obra. Mas filmar segundo um conjunto de regras era algo que já tinha feito antes e voltou a fazer depois. Ele trabalha melhor dentro de um espartilho. Para ele, é muito importante ter regras, restrições, limites. Dentro desses limites, a criatividade floresce", diz Schelepern. A necessidade de regras auto-impostas pode ter tanto a ver com falta delas durante a sua educação - a filosofia dos pais passava por não lhe impor qualquer tipo de restrições durante o crescimento - como com a vontade de escapar aos primeiros filmes hipnóticos e decandentes, alegóricos e simbólicos, em que o sentido visual prevalecia sobre o resto (na descrição de Schepelern).
 
Para o professor dinamarquês, a grande ruptura no cinema de Lars von Trier dá-se quando decide colocar a mulher no centro dos seus filmes. "Nos seus primeiros filmes, da trilogia da Europa - O Elemento do Crime, Epidemia, Europa -, a personagem principal é um homem, um idealista desiludido, cujos sonhos se esfumam, e acaba num limbo ou mesmo morto. A partir de Ondas da Paixão, o seu primeiro grande sucesso internacional, deu-se conta de que o seu cinema talvez funcionasse melhor com uma protagonista feminina. Bess em Ondas de Paixão. Selma em Dancer in the Dark, Grace em Dogville e por aí fora até à Joe de Ninfomaníaca. Da mesma forma que Flaubert disse que era a Madame Bovary, Trier poderia dizer que era as suas personagens femininas. Todas as vulnerabilidades, as debilidades, a depressão de Justine em Melancolia, por exemplo, são claramente as de Trier."

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Curta Nocturne
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Média Images of a Relief

Recentemente, von Trier, em tratamento para deixar o álcool, lançou a ideia de que poderia deixar de filmar. "Ele disse que tinha medo de perder a criatividade que nos últimos vinte anos esteve ligada ao facto de beber muito e tomar algumas drogas. Não acho que tenha vindo tudo da bebida e das drogas", diz Schepelern. Será mais uma provocação deste "exibicionista tímido"? Sinal do cansaço do seu cinema? Do cansaço dos espectadores? Estará Lars von Trier acabado?

"Na história da arte, é difícil estar na moda e na vanguarda de um estilo artístico década após década. Mas a obra de Trier é tão diferente: dos primeiros filmes, com aquele estilo hipnótico, como a primeira longa-metragem O Elemento do Crime, passando pelo registo câmara à mão de Ondas de Paixão, até o novo estilo em Ninfomaníaca, com todas as alusões, pequenas citações de filmes de arquivo, textos e números. Diria o contrário, numa altura em que Trier se aproxima dos 60 anos - que fará para o ano -, fico surpreendido que ainda consiga estar na vanguarda. Trier, nos anos 80, era jovem e rebelde herdeiro de [Andrei] Tarkovski, [Ingmar] Bergman e Dreyer. Nos anos 90, teve o Dogma, o sucesso de Ondas de Paixão. E, recentemente, um filme como Anticristo é altamente original. A recepção de Ninfomaníaca… Podia haver o medo que as pessoas dissessem 'ai, meu Deus, isto é horrível', e houve quem não gostasse, como é óbvio, mas a maioria entendeu e compreendeu que ele é um artista muito importante, que está a fazer o que mais ninguém mais faz."

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