Em Berlim a atenção vai para os filmes impossíveis de distribuir

O Festival de Berlim mostrou até agora uma mão-cheia de filmes notáveis: de Jafar Panahi a Joaquim Pinto.

Fotogaleria
Um protesto contra o impedimento de Jafar Panahi viajar até ao Festival de Berlim AFP/JOHN MACDOUGALL
Fotogaleria
Taxi, de Jafar Panahi
Fotogaleria
Rabo de Peixe, de Joaquim Pinto
Fotogaleria
Queen of the Desert, de Werner Herzog
Fotogaleria
Knight of Cups, de Terrence Malick
Fotogaleria
El Club, de Pablo Larraín
Fotogaleria
Ixancul, de Jayro Bustamante

Mas a Berlinale também parece estar ciente de ter de assumir alguma responsabilidade de incorporar a história da cidade – algo que parece prolongar-se eternamente. Os fantasmas políticos que ainda assombram Berlim (e que ajudam ao seu apelo turístico) dão à cidade um espírito profundamente revolucionário que também ressoa na agenda assumidamente política do festival. É algo surpreendente que o Festival de Berlim ainda consiga manter relevância, apesar de ter um programa em contínua expansão e de assumir tarefas laterais algo alienadoras, como o espaço  de Cinema Culinário, ou, como neste ano, uma secção dedicada à estreia de séries de televisão.

Se é ou não possível estabelecer uma fronteira entre o enriquecimento e a maximização de lucros ou entre a qualidade e a diluição é algo que só será mais bem analisado mais tarde. Contudo, estando nós a meio do festival, a Berlinale, ainda sob a direcção artística de Dieter Kosslick, mostrou até agora pelo menos uma mão-cheia de filmes notáveis nas suas principais secções, naquelas em que tradicionalmente – competição internacional e Fórum – se combinam activismo e arte.

Um exemplo é o novo filme de Jafar Panahi, Taxi, que se estreou na competição e que é um contributo marcante. Uma continuação da série de “filmes escondidos” do iraniano, que começou com This Is Not a Film e Behind the Curtain depois de Panahi ter sido preso em 2010 e sentenciado a uma pena que o proibia de trabalhar ou viajar durante 20 anos por alegadamente fazer “filmes críticos do regime”, Taxi é mais um cavalo de Tróia, uma bomba de alusões, crítica, análise – e humor, directo ao assunto.

Panahi está ao volante como taxista, câmara instalada atrás do pára-brisas. Na sua viagem por Teerão, apanha vários convidados. Podia facilmente ter prolongado a sua jogada de fundir documentário da vida real com a ficção antes de revelar inteira e rapidamente que filme foi inteiramente escrito. Entre os passageiros está um condutor de uma motorizada que sangra e que faz o seu testamento através do telefone de Panahi, um comerciante de DVD que tenta convencer o realizador a juntar-se a ele no seu negócio clandestino, e a própria sobrinha de Panahi, que ele vai buscar à escola. Ela lê alto as regras de realização de filmes que a escola lhes deu. “Tentar sempre fazer um filme que seja distribuível”, lê-se. “De outra forma, ninguém o quererá ver.”

Em termos iranianos, “distribuível” significa cumprir as leis religiosas e as restrições ditatoriais. Mas claro que Panahi faz aqui um statement sobre o cinema actual em geral e responde à pergunta sobre o que torna um filme distribuível e “exibível”, ao opor-se radicalmente às regras da feitura de um filme “adequado”, vendável.

Ao mesmo tempo, o artista plástico e realizador chinês Ai Weiwei completou na segunda-feira a rodagem do seu novo filme em Berlim, ainda que não tenha estado fisicamente presente. Desde que foi preso por apoiar os protestos na China em 2011 não tem passaporte, mas o seu filho vive na cidade alemã. Para retratar as condições desta relação pai-filho mantida exclusivamente através da Internet, e para captar a visão do seu filho desta cidade estrangeira, Ai Weiwei dava indicações via Skype e as imagens das filmagens, as posições das câmaras e os bastidores eram transmitidos para um ecrã gigante na Potsdamer Platz. Ao longo de três dias, os visitantes podiam testemunhar este processo transparente de feitura do filme – e é também este tipo de alocação de meios que faz de Berlim um “parceiro no crime” favorável no que toca às artes criativas.

A separação devido a razões políticas é o destino que enfrentam os protagonistas de Ixancul. Uma primeira obra de Jayro Bustamante, é a primeira entrada na competição de um filme da Guatemala. Bustamante olha para desesperante situação da população indígena da Guatemala, e da sua relação com a natureza, que no filme é dada com um vulcão a presidir a uma plantação de café. Maria, 17 anos, está destinada a casar-se com um capataz, mas deseja secretamente fugir para os EUA com o jovem trabalhador Pepe. Engravida, Pepe abandona-a e Maria fica agarrada à sua amada, e supersticiosa ao ponto do fetiche, mãe. É um sereno retrato de um país tão dividido pela colonização (espanhola), que apenas os reprimidos indígenas transportam a ferida. Especialmente forte na segunda parte, Ixancul consegue fundir a urgência do quotidiano com a espiritualidade de um povo em permanente colisão com os seus sonhos de uma impossível vida melhor.

Muito para além da espiritualidade, o chileno Pablo Larraín mostrou um olhar extremamente amargo, ferozmente satírico e ainda assim cheio de humor sobre a religião, a hipocrisia moral e os instintos arcaicos. El Club (competição), filmado com lentes anamórficas que Andrei Tarkovski usava nos anos 1960, é um filme nebuloso, sombrio e “sujo” como o interior dos protagonistas: quatro padres, supervisionados por uma freira, os cinco excomungados pela Igreja porque cada um deles cometeu um crime que o Vaticano não tolerou, vivem numa pequena casa numa ainda mais pequena aldeia algures na costa chilena, onde é suposto arrependerem-se, arrependerem-se, arrependerem-se. Quando acontece um suicídio, recebem a visita de uma entidade do Vaticano e as coisas começam a escapar ao controlo.

Um intenso clímax é o resultado inevitável, embora não o objectivo principal, do cineasta alemão Sebastian Schipper, que filmou Victoria num único take. É um filme, em competição, que apanhou desprevenida toda a gente em Berlim, conseguindo sem dúvida aquilo que hoje é raro: agarrar a atenção dos espectadores durante 140 minutos por não ter cortes e – são os tempos modernos – parecendo uma versão longa de um vídeo de alta qualidade que alguém filmaria no telemóvel a propósito do encontro nocturno entre um gang de beatnicks de Berlim e uma estudante espanhola, Victoria.

Protagonistas femininas e o poder feminino em geral é um tópico deste ano dos festivais, mas quando o assunto se sobrepõe à qualidade isso faz os standards de selecção baixarem. O filme de Werner Herzog, em competição, Queen of the Desert, sobre a aventureira Gertrude Bell (no exterior jovem, mas visivelmente cansada no interior de lutar contra o envelhecimento: Nicole Kidman), é tão vazio e ridículo como Knight of Cups, de Terrence Malick, que é uma segunda edição do que o cineasta americano fez melhor em A Árvore da Vida e, como To the Wonder, mostra o percurso  desorientado de um homem insinuando-se entre os traseiros perfeitos das mulheres. Ao tentar falar sobre o vazio e a superficialidade, o discurso igualmente vazio e vácuo do protagonista é incapaz de dizer o que quer que seja.

No mar de possibilidades, hoje, para os cineastas, é especialmente importante perguntar o que é que torna um filme “distribuível”, “mostrável”. Os festivais de cinema desempenham um papel importante nisto e, olhando para o programa da Berlinale, é isso que a competição e as secções Panorama e Forum estão a tentar mostrar. O mar como campo de trabalho, na verdade, é assunto de contemplação em Rabo de Peixe, de Joaquim Pinto, criado em colaboração com o companheiro, Nuno Leonel, e esboçando os altos e baixos de uma comunidade piscatória açoriana que vive na aldeia do mesmo nome.

Não propriamente um filme novo, é uma nova montagem do material que Pinto e Leonel filmaram entre 1998 e 2002, originalmente uma encomenda televisiva para um “retrato da forma de vida em extinção dos que praticam a pesca tradicional nas águas açorianas”. Muito mais pessoal nesta nova versão e recuperando um olhar crítico sobre as coisas, é um filme profundamente humano, diário íntimo que desagua em reflexões filosóficas e referências míticas, uma forma poética de assumir a ligação entre todas as coisas. Como em E Agora? Lembra-me, o épico e extremamente íntimo documentário biográfico de Pinto e Leonel, muito do material em vídeo foi filmado de forma livre, com o comentário adicionado posteriormente. Em mãos menos sofisticadas esta abordagem poderia levar a críticas de sentimentalismo new age, mas aqui a sinceridade e uma sensibilidade única pulsam em cada plano – e, mesmo que não seja distribuível, definitivamente é visível.

Sugerir correcção
Comentar