O que tem de especial criar para crianças?
Público exigente e que não finge gostar, as crianças têm agora mais ofertas culturais de qualidade. Sem condescendências nem infantilismos. Davide Cali e Serge Bloch, ambos autores e ilustradores, estão em Lisboa para falar disso.
“Queremos cruzar experiências de várias áreas – literatura, música, cinema e artes de palco –, partilhando percursos, saberes e dificuldades na abordagem ao universo infantil”, diz Inês Fonseca Santos, jornalista e comissária do encontro. Nesta linha, os participantes são também convidados a recordar-se de uma criação artística que os tenha influenciado durante a infância. “Pode ser um livro, uma canção, um filme ou qualquer outra memória.”
O que tem então de diferente a criação artística para crianças? O público. “Mais exigente e aberto”, segundo Davide Cali, escritor e ilustrador italiano que abrirá o colóquio, e “que compreende mais rapidamente devido aos seus neurónios ainda tão frescos”, de acordo com o francês Serge Bloch, também escritor e ilustrador, que o acompanhará na conferência de abertura, marcada para as 10h, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Mas nem um nem outro se preocupam muito com a idade dos leitores.
“Eu escrevo para todos, por isso talvez as minhas histórias continuassem a fazer sentido” num mundo onde hipoteticamente não existissem crianças, “pelo menos assim o espero”, disse Davide Cali ao PÚBLICO numa entrevista via email. Já Serge Bloch, que também faz cinema de animação e publicidade, afirma: “Não há grande diferença entre pequenos e grandes, a não ser no tamanho.”
Inês Fonseca Santos gosta da expressão que o músico Fernando Mota usa no lugar de “para crianças”. É ela: “Para todas as infâncias.” Autora do livro infantil A Palavra Perdida (edição da Abysmo), acredita que “os autores não se sentam a pensar assim: ‘Vou escrever para crianças.’ Começam a escrever e depois a história toma esse rumo”. O que considera fundamental é que as criações para a infância “não sejam consideradas menores”, lembra que “não deve haver infantilização nem condescendência” e avisa quem não sabe que “as crianças são exigentes e implacáveis”.
Sobre tudo isso se vai debater durante dois dias, com contributos de convidados que comunicam em vários registos, como Afonso Cruz (escritor, ilustrador, cineasta e músico), António Jorge Gonçalves (criador de novelas gráficas, autor de cartoon, ilustração editorial e cenografia/performance visual) ou André da Loba (ilustrador e animador).
O colóquio irá dividir-se em quatro grandes painéis, a que correspondem quatro perguntas: “É então isto um livro?”, “É então isto um filme?” (segunda-feira); “É então isto uma canção?” e “É então isto um espectáculo?” (terça-feira). A completar o programa, haverá o espectáculo É pr’a Meninos? (B Fachada, André Gonçalves e Manuela Azevedo, e André da Loba) e depoimentos filmados de José Miguel Ribeiro, Fernando Mota e Sérgio Godinho, e Aldara Bizarro e Maria de Assis Swinnerton.
Espectáculos “para e com crianças”
Para Madalena Victorino, coreógrafa e programadora do festival Todos, “um espectáculo pode ser aquilo que faltava acontecer entre uma criança e um adulto...”. A fundadora do primeiro espaço em Portugal de fruição artística internacional para um público jovem, no CCB, participará no congresso e resumiu assim a sua apresentação: “Em certas experiências de espectáculo, é possível às crianças observarem os adultos como alguém que se engana, que chora e que ri, que lhes mostra o que sente e até se transforma e cresce ao longo do espectáculo, como elas... Um espectáculo pode dar-lhes essa dimensão do humano... São esses espectáculos para e com as crianças e onde os adultos finalmente se revelam que mais me interessam.”
Na música, Manuela Azevedo, vocalista dos Clã, fala dos miúdos como “ouvintes francos, generosos, curiosos” que ajudaram a sua banda “a ter confiança na rota decidida para a viagem” que foi a criação do Disco Voador. “Foram muitas as vezes em que nos questionámos: ‘É isto para crianças? É isto uma canção para crianças?’”
Já o que mais inquieta o artista B Fachada (Bernardo Fachada) são “os perigos de uma cultura dogmática aplicada às crianças”, aquilo a que chama “infantilização da infância”. No seu texto de síntese para o encontro, mostra preocupação com “a ética de negócio na produção cultural infantil” e com “o volume desse negócio”. Em 2010, criou B Fachada É P’ra Meninos.
A autora Patrícia Portela defende que “um espetáculo experimental para um público mais jovem deve assemelhar-se a um projecto científico e não a um projecto pedagógico, pelo que o nível de risco e experimentação deve ser máximo”.
A cineasta Regina Pessoa diz que a questão que o colóquio lhe propõe, é então isto um filme?, “encaixa como uma luva” no trabalho que tem vindo a desenvolver há vários anos com Abi Feijó. “Apesar de as nossas curtas de animação nem sempre se destinarem a um público infantil, um filme de animação é sempre o cruzamento de várias disciplinas e meios de expressão artística, englobando a linguagem do cinema, o desenho e a pintura (se for um filme em desenho animado), a música, a fotografia, a literatura e podendo ainda ser alargado à área da ciência, se pensarmos nos fenómenos da óptica, percepção, psicologia, etc.”
Um dos seus propósitos é o de dar a conhecer aos miúdos (ou adultos) como funciona “a imagem em movimento”. A criança pode “aprender a tirar partido dela e talvez possa vir a ser menos ‘manipulada’ pelas avalanches de conteúdos que absorve diariamente”.
Este livro é para que idade?
Davide Cali lembra como é um problema para os pais e professores identificar a idade dos leitores a quem o livro se destina: “Sempre que estou a autografar livros, alguém me pergunta: ‘Este livro é para uma criança de quatro anos?’ É difícil responder. É suposto que as crianças não se interessem por temas que consideramos ser para a idade adulta. No entanto, quando vou a encontros em escolas, noto que as crianças gostam de conversar sobre o amor, a guerra, o significado da vida... O que podemos, então, considerar um livro para crianças?”
Quando lhe perguntamos se pensa no destinatário do livro, responde: “Nunca ou quase nunca. Estou quase a terminar um pequeno romance. É para pré-adolescentes, pelo que tenho de ter alguns cuidados com a linguagem (nada de palavrões, mesmo se os pré-adolescentes os dizem bastante). Senão, apenas conto histórias, que podem agradar também aos adultos. Normalmente, escrevo para mim. Depois, para o meu público, mas não penso forçosamente em crianças, ainda que teoricamente eu faça livros para elas.”
Serge Bloch diz: “Faço desenhos e escrevo textos. Também faço desenhos animados — para crianças e para adultos. Haverá diferença quando se trabalha para uns e para outros?” Além da característica dos “neurónios mais frescos”, acrescenta: “Talvez se possa falar de tudo com uns e com outros, mas certamente não importa como. ‘Podemos rir de tudo, mas não com toda a gente.’”
Recorda a colecção Max e Lili, de há mais de 20 anos, em que se abordaram temas então tabu para os mais jovens, como a morte, a droga, os maus tratos. Para concluir que, “com Davide Cali, a abordagem é semelhante, apesar de menos pedagógica”.
Acrescenta ainda: “Os nossos livros podem ser lidos por todos, crianças e adultos, e, como estão traduzidos em vários países, circulam por todo o mundo: pela Europa, pela Ásia, pela América... Os temas dos livros que fiz com Davide são ‘humanistas’: o amor, a vida, a paz...”
Em Portugal, assinado pelos dois só está traduzido Eu Espero… (Bruaá Editora). “Identifico-me completamente com estes temas e essa é a razão por que fizemos estes livros sem sequer nos encontrarmos.” Vão estar juntos pela primeira vez “ao vivo”, em Lisboa.
Davide Cali espera que esteja muita gente na Gulbenkian e espera também muitas perguntas. “Não gosto de fazer monólogos e muitas vezes é o que acontece quando me encontro com adultos. Eles nunca põem questões porque são muito tímidos. Com as crianças, é ao contrário. Em cinco minutos, somos como velhos amigos: eles fazem muitas perguntas.”