Eduardo Lourenço, cena primitiva

A relação de Lourenço com a geração neo-realista e o seu importante contributo para entendermos este movimento que foi, de maneira mais lata, um “fenómeno cultural”, eis o que nos é dado neste volume das Obras Completas

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Este volume é uma peça importantíssima na bibliografia sobre o neo-realismo, mas também importante para acedermos a um momento fundamental do percurso intelectual de Eduardo Lourenço Nelson Garrido

O segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço reúne tudo o que o autor escreveu sobre o neo-realismo. E foi muito. Para além do livro escrito em 1959/1960 e só publicado em 1968, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, havia afinal uma massa enorme de textos dispersos, alguns deles não apenas estritamente sobre autores e obras do neo-realismo literário. Nas suas quase quinhentas páginas, encontramos neste volume textos que vão desde a história e a “revisitação” da revista Vértice (da qual Eduardo Lourenço chegou a ser parcialmente proprietário, na primeira metade dos anos 40, porque utilizou algumas economias para a salvar) a textos mais recentes sobre o Partido Comunista Português e o Manifesto do Partido Comunista, de Marx. Como se justifica a decisão de juntar estes textos aos da produção crítica e ensaística sobre a literatura neo-realista? A decisão dos coordenadores científicos das Obras Completas, Carlos Mendes de Sousa e João Tiago Pedroso Lima (a que se junta Teresa Filipe, da equipa de investigação) e do coordenador deste volume, António Pedro Pita, que assina também uma excelente introdução sobre o neo-realismo como “problema” estético-ideológico, encontra plena justificação no facto de Eduardo Lourenço ter entendido o neo-realismo – um entendimento bem patente em tudo o que escreveu sobre ele – como “fenómeno cultural”, uma ampla constelação, e não apenas como um movimento estético-literário.

Este volume é uma peça importantíssima na bibliografia sobre o neo-realismo, mas também importante para acedermos a um momento fundamental do percurso intelectual de Eduardo Lourenço, para chegarmos, digamos assim, à sua “cena primitiva”. Encontramos em pelo menos um dos textos aqui incluídos algumas notas de carácter auto-biográfico: conta Eduardo Lourenço que chegou a Coimbra em 1940, com 17 anos, e, através de Carlos de Oliveira, seu companheiro de curso, com o qual estabeleceu uma profunda amizade, passou a ser uma espécie de compagnon de route de uma “geração” da qual se iria tornar “dissidente” – uma dissidência que se tornou bem manifesta em 1949, quando publicou Heterodoxia I, onde as aventuras da dialéctica e as crenças optimistas e gloriosas no devir da História não tinham lugar, como era de esperar em alguém que tinha começado a frequentar Kierkegaard. A reivindicação de uma heterodoxia era, implicitamente mas de maneira bem visível, uma contestação da ortodoxia ideológica que a “cultura neo-realista” tinha fixado.

Em várias entrevistas Eduardo Lourenço se referiu a essa condição de “dissidente” da sua geração e até justificou esse livro escrito em 1959/1960 (num ano em que esteve “desempregado”) como um gesto de certo modo afectivo ou, pelo menos, nada indiferente às dívidas afectivas e ao companheirismo dos seus anos de formação. Sentido e Forma da Poesia Neo-realista é um livro sobre três poetas: João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. É significativo que Eduardo Lourenço tenha aqui limitado o seu corpus de estudo à poesia, ele que reconhece nas considerações finais desse livro esta evidência: “Não é na poesia que melhor se colhe (pelo menos, com mais facilidade) o autêntico carácter do Neo-Realismo”. A verdade é que está muito mais interessado em colher um “carácter” menos evidente do neo-realismo, aquele em que “a poesia se levanta sempre do leito de toda a Ideia”, isto é, aquele em que a linguagem da poesia entra numa espécie de rebelião contra toda a precedência ideológica e diz sempre mais – e outra coisa - do que os escritores e os críticos neo-realistas pretendiam que ela dissesse (numa atitude simétrica aos detractores que, mais tarde, lerão “o que nunca lá esteve”, escreve Eduardo Lourenço). Em suma: Eduardo Lourenço lê a poesia destes três autores mostrando que, em cada um deles, ela é atravessada por contradições internas e coloca questões que de algum modo contradizem o ideário neo-realista. E isso está logo patente nos títulos: João José Cochofel ou a Poesia da ImanênciaJoaquim Namorado ou a Epopeia ImpossívelCarlos de Oliveira e o Trágico Neo-Realista. A “imanência”, a “epopeia impossível” e o “trágico” designam afinal tropismos fundamentais de um lirismo que nada deve a uma certa ganga sociológica e é dotado de uma muito maior autonomia do que a que erstava prevista doutrinariamente. E na poesia de Carlos de Oliveira lê Eduardo Lourenço uma dimensão pessimista, quase “tenebrosa” e até “metafísica”, que entra em clara contradição com a visão do mundo e da História da mitologia crítica do neo-realismo. Ler as astúcias da poesia contra as astúcias da ideologia, ou seja, seguir uma démarche crítica que obriga a falar primeiro dos textos poéticos e só depois da ideologia – eis o grande contributo de Eduardo Lourenço para o estudo da poesia neo-realista, tão importante como o seu contributo para a configuração do neo-realismo como fenómeno cultural e visão do mundo baseada numa teoria da História.

Há ainda uma questão que um título como Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista não pode deixar de evocar: trata-se da dicotomia forma/conteúdo, que serviu para a denúncia dos “formalismos” e dos “decadentismos” das experiências literárias modernistas. O neo-realismo foi por vezes bastante permeável aos equívocos que esta dicotomia geralmente traz consigo. Ora, é preciso dizer que Eduardo Lourenço nunca se sujeitou a análises baseadas em tal dicotomia e, nesse aspecto, também se afastou de uma ortodoxia crítica que legitimou o monologismo conteudístico dos textos literários enquanto expressão de uma ideologia. 

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