Barbora já pode correr na rua sem medo
Após ter anunciado em Junho de 2014 a sua despedida como bailarina, Barbora Hruskova regressa ao Teatro Camões, em Lisboa. Em A Perna Esquerda de Tchaikovsky, cruza memórias de coreografias com um tom confessional escrito por Tiago Rodrigues e acompanhado ao piano por Mário Laginha.
A perna esquerda de Tchaikovsky é de Barbora Hruskova. É a perna estragada de Barbora, baptizada com o nome do compositor russo porque a lesão que ali carrega e apressou o seu final de carreira deve-se a Tchaikovsky. Ou melhor, deve-se a Lago dos Cisnes. Ou melhor ainda, deve-se à traição de um movimento que em conluio com a perna a invadiu de dores ao interpretar o clássico. O corpo de Barbora Hruskova, primeira bailarina da Companhia Nacional de Bailado (CNB) que em Junho de 2014 anunciou a sua despedida ao dançar Giselle, é um detalhado mapa das suas lesões, das suas dores, dos seus sacrifícios e das suas provas de superação: a perna esquerda de Tchaikovsky, o pé de Prokofiev, o quadril de Sonho de Uma Noite de Verão, o dedo de Carmina Burana, o cóccix de Händel, o joelho de Sylphide. “Cada dor é uma música”, diz a ex-bailarina, traçando as correspondências.
A Perna Esquerda de Tchaikovsky, em cena no Teatro Camões de 5 a 15 de Fevereiro, não passa por cima da retirada oficial de Hruskova. Não finge ter-se distraído do discurso emocionado com que se despediu, aos 42 anos, do público da CNB. É um espectáculo entre a dança e o teatro, numa escala íntima e confessional, um rememorar em palco por parte de Barbora dos seus tempos de bailarina clássica, desde a consciência precoce dos limites físicos – “o teu corpo não foi feito para dançar”, diziam-lhe pai e mãe, bailarinos, ainda em criança – e da constante firmeza em não se deixar tombar por estas evidências, até ao crescendo de dores que reclamava descanso mas era eclipsado por um prazer que gritava sempre mais alto. Essa é uma das ideias nucleares explorada pelo texto de Tiago Rodrigues, convidado por Luísa Taveira – directora artística da CNB – a trabalhar a história de uma bailarina em fim de carreira. Na verdade, já após o fim da carreira. A ideia de que “o que a Barbora quer não é necessariamente o que o corpo quer”, segundo o autor. “Vivem juntos, trabalham juntos, mas são diferentes. Tentamos levar para palco esse diálogo entre uma bailarina e o seu corpo, em que nem sempre concordam.”
A falta de concordância, apesar de Barbora falar longamente com os seus pés, ilustra também uma relação diferenciada com as várias partes do corpo. Com os pés há intimidade, com os braços uma ligação cordata, com os ombros um péssimo entendimento. Foi também nesta cartografia de Barbora que Tiago Rodrigues e Mário Laginha descobriram um dos relatos mais marcantes das entrevistas à ex-bailarina que alimentam a peça: na sequência de um acidente de corrida aos 14 anos, em que fracturou os dois pés, Barbora nunca mais correu na rua com medo se de poder magoar. “Como o meu corpo estava frágil e maltratado”, confidencia ao ÍPSILON, “tentava não o maltratar fora do estúdio. Agora vou poder fazer outras coisas – como correr ou dançar na discoteca.” Correr e dançar por mero prazer fizeram parte das proibições que se impôs. Até o momento de ter um filho, sabendo que o corpo não voltaria a ser o mesmo, foi decidido em função da profissão. Está também no texto e na boca de Barbora, em mais uma ocasião em que as ingerências permanentes da dimensão pública na privada se infiltram no discurso artístico de Tiago Rodrigues. Desta vez, guiadas pelo “cânone vivo” que é Barbora Hruskova.
Vulnerabilidade e combatividade
Há então um movimento de libertação interrompido. Se o final da carreira de um/a bailarino/a traz consigo o fim de uma vida de severidade, de uma certa prisão, do rigor de um catálogo rígido de movimentos – ou se faz bem ou mal –, o dia depois do último espectáculo significa o regresso a um corpo natural, como se terminassem os expedientes artificiais e o corpo fosse novamente devolvido às regras e aos limites da biologia. A Perna Esquerda… cria, por isso, um cenário de confusão nesta luta entre a vontade de Barbora e do seu corpo. Agora, está a contrariá-lo depois de ter anunciado o abandono, está a pedir-lhe um último esforço. E chegou mesmo a retomar uma preparação que tinha afrouxado, deixando-a dorida durante os primeiros dias de trabalho com Tiago Rodrigues e Mário Laginha. “Ela estava a preparar-se para dançar um clássico, a preparar-se como se fosse dançar a Giselle, com um grande nível de exigência”, lembra o autor. Até que Tiago lhe disse: “Este espectáculo é o contrário – é para dançares aquilo que o teu corpo te deixa dançar hoje. Se dançares mais do que isso já não estou interessado.”
Foram semanas de busca por uma aceitação de que não era a perfeição nem a superação dos limites que deveriam subir a palco, mas sim o reconhecimento e o conforto com esses limites. Assim, Barbora coloca-se diante de um espelho inexistente, contando a história de uma bailarina em fim de carreira (construída a partir da sua biografia), e abandona-se a um relato entrecortado pelas recordações dançadas dos momentos da sua vida artística que lhe ficaram desenhados no corpo de forma mais impressiva. A memória, equívoca e não linear, implica também que aos excertos dançados correspondam passagens musicais de Laginha ao piano – só na evocação de Lago dos Cisnes se cola à música original, para logo em seguida a largar e insistir neste movimento pendular, entrando e saindo de Tchaikovsky à medida que também Barbora o vai fazendo com o movimento. Num tema de Hermeto Pascoal sobre um discurso de Collor de Mello, Laginha encontrou ainda o rastilho para justapor o piano à voz de treino de Barbora.
Por toda esta “dissecação poética e musical” de um momento frágil e vulnerável na vida da uma bailarina, ao reconhecer que o seu corpo já não se encontra apto para o extremo físico a que sempre foi sujeito, perpassa a ideia de uma vida em que a profissão se impõe em todas as escolhas. Mas também na vulnerabilidade de Barbora se deixar ver assim, sozinha em palco e sem perseguir a perfeição, Tiago Rodrigues encontra outro tanto de combatividade. “Não tenho treino militar”, diz ele, “mas numa questão de vida ou morte não levava comigo soldados, levava bailarinos. Têm uma espantosa coragem física e emocional, uma grande resistência à dor e esfolam-se todos só por uma ideia – beleza. São esses que quero ao meu lado numa cena de porrada.” Acabada a batalha, A Perna Esquerda… é um novo agradecimento de Barbora. Já não ao público ou à CNB, aos coreógrafos ou aos colegas. Agora é a hora de agradecer ao corpo que a deixou dançar.