Saber cuidar dos inimigos

Eis uma proposta: abraça o teu inimigo. Ele tem muito a ensinar-te, quanto mais não seja o regulamento para todas as acções que não deves ou não queres ou não podes tomar

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Danish Siddiqui/Reuters

Na aparência, tendemos a descartar dos nossos egos perfeitos, imaculados e irracionalmente felizes sentimentos feios e de negativas tendências. Como se os ódios e as invejas não nos fossem tão inatos quanto as graças que nos afagam o espírito. Que os ódios e as invejam nos fazem mal às sanidades da consciência já nós estávamos cansadinhos de saber, mas não é por o bacon e as batatas fritas regadas a ketchup nos fazerem mal que os arrancamos dos nossos cardápios, pois não?

Eis uma proposta: abraça o teu inimigo. Não tomes, contudo, esta sugestão no sentido literal; corres o risco de perder uma vista à conta de um garfo ou ver-te ser arrancado um braço numa luta evitável. Considera, antes, isto: e se, para variar, bloquearmos os ímpetos que nos censuram os negrumes da alma para os melhor compreender? Que benefícios podemos tirar das invejas que nos são inevitáveis e dos pulsares odiosos da bílis ácida?

A verdade é que o teu inimigo tem muito a ensinar-te, quanto mais não seja o regulamento para todas as acções que não deves ou não queres ou não podes tomar. É um "reminder" constante portátil para a tua consciência, segundo o qual qualquer circunstância se poderia assemelhar a isto: há uma determinada situação moralmente ambígua e não sabes o que fazer. Sacas do inimigo que trazes no bolso e indagas-te a ti próprio: “O que é que aquele bandalho faria agora? Isto. Nesse caso, farei precisamente o contrário”. Voilà.

Observa cada acto do teu inimigo, sem nunca te deixares cair na obsessão. Tira notas sobre cada vitória sua, mais uma entrada num diário de bordo complementa sempre a narrativa. Ainda assim, sorri quando o teu inimigo se espalhar ao comprido. Mas nada digas em voz alta: não te ficam bem as baixezas de espírito. Autoriza-te a dirigir-lhe um insulto tão jocoso quanto silencioso e prossegue no teu caminho. Se as entranhas te deixarem, oferece-lhe até um valoroso auxílio, num acto a que o povo gosta de chamar “chapada de luva branca”. De qualquer modo, não te permitas subestimá-lo. Convenhamos: tu não vales mais que ninguém e deves saber que quem te transtorna de uma forma tão víscera, tão intensa, tão horrenda, tem de carregar em si forças extraplanetárias. Não temas sentir admiração por quem detestas, porque há sempre valor naqueles que nos afectam. Cultiva-te, por isso. Completa-te com as qualidades de quem odeias e suplanta-as.

Não acredito naqueles que dizem que devemos deixar os ódios de lado, porque isso é contrariar a natureza da forma mais errada possível. É sonegá-la, escondê-la com uma peneira demasiado esburacada. Fugir aos ódios não deve ser uma opção. Armado em guru de auto-ajuda de algibeira como uns tantos que vamos conhecendo por aí, tomo a liberdade de dizer isto: do estrume mais nauseabundo nasce a melhor colheita. Aprende com os bons, sim. Mas torna-te ainda melhor com os malévolos.

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