A viola de arco como rainha
Um programa fora do comum no qual Christophe Desjardins mostrou que para além do repertório contemporâneo é também um primoroso intérprete da música do século XVIII.
A viola de arco pode ser um instrumento fascinante, mas é por vezes mal compreendido ou visto apenas como parceiro de segundo plano, tendo em conta o seu papel de mero preenchimento da textura em muitas obras orquestrais. As inúmeras anedotas sobre violas e violetistas que circulam entre os músicos são bem reveladoras deste estereótipo. O último concerto da Temporada Barroca da Metropolitana foi a perfeita antítese deste panorama. Nele a viola de arco foi rainha, contando com um dos seus mais brilhantes intérpretes, Christophe Desjardins, e com um programa fora do comum.
O convite ao violetista francês, figura de topo no repertório contemporâneo e destinatário de numerosas obras de criadores do nosso tempo, pode parecer pouco óbvio no contexto de um ciclo dedicado ao barroco, mas Desjardins é um músico versátil, que também tem feito incursões na música do passado destinada (ou passível de ser adaptada) ao seu instrumento. A sua técnica exímia, o seu bom gosto e inteligência musical convergem em versões de alto nível num amplo leque de campos estéticos. Foi assim revelador ouvi-lo no Concerto para Viola TWV 51: G9, de Georg Ph. Telemann (1681-1767), a primeira obra de vulto a solo dedicada a este instrumento, e no Concerto para Viola nº1, de Jiri Antonín Benda (1722-1795), composição atraente plena de inspiração melódica e teatralidade.
Entre as duas obras setecentistas, ouviu-se a Sequenza VI, de Luciano Berio (1925-2003), peça de referência no repertório para viola da segunda metade do século XX que tem em Desjardins um intérprete de eleição. O imensos desafios técnicos da partitura (que explora de forma engenhosa as possibilidades harmónicas de um instrumento de natureza melódica e está repleta de efeitos espectaculares como os impetuosos trémulos e imaginativas figurações plenas de agilidade) soaram nas mãos de Desjardins com uma naturalidade surpreendente.
O concerto tinha começado com a Ouverture (Suite) TWV 55:G2, de Telemann, designada La Bizarre devido aos efeitos harmónicos rítmicos pouco comuns na linguagem da época. Inicialmente, o volume sonoro da Orquestra Metropolitana (reduzida a um conjunto de 14 instrumentistas, mais adequado à transparência da música setecentista) mostrou-se um pouco excessivo e forçado para espaço da sala, mas pouco a pouco foi ganhando equilíbrio numa interpretação rica em contrastes e atenta aos princípios estilísticos do barroco.
Pouco tempo depois de ter tomado posse como director artístico, Pedro Amaral referiu “a aposta no amadurecimento da interpretação da música barroca numa perspectiva historicamente informada”. Mesmo com instrumentos modernos é possível tal aproximação. “Hoje já não podemos tocar Bach ou Mozart como se fosse Bruckner”, disse na altura em que apresentou a temporada. A prestação da Metropolitana ao longo deste concerto mostrou que esse caminho tem sido seguido e também, mais uma vez, o carisma e o apuro técnico e musical da violinista Ana Pereira como concertino. Nos Concertos para Viola, de Benda e de Telemann, a orquestra correspondeu em uma boa sintonia com a direcção de Christophe Desjardins, cujas qualidades como solista contribuíram para interpretações luminosas, marcadas por fraseados elegantes de grande nitidez, uma qualidade de som que fez emergir de forma límpida o característico timbre da viola e fluente destreza nas cadências do Concerto de Benda.