A morte que pode matar o kirchnerismo
Alberto Nisman apareceu morto dias depois de acusar Kirchner de encobrir os responsáveis por um atentado bombista. Homicídio ou suicídio, perguntam-se os argentinos.
Alberto Nisman era um homem sob pressão naquela tarde de domingo, há precisamente uma semana. No dia seguinte iria enfrentar o Congresso de Deputados, numa sessão durante a qual seria posto à prova o trabalho de mais de uma década. Em causa estava a investigação ao atentado terrorista contra a Associação Mutualista Israelita Argentina (AMIA) em Buenos Aires em 1994, em que morreram 85 pessoas e 300 ficaram feridas. Desde 2004 que Nisman – ele próprio de raízes judaicas – liderava as investigações em regime de exclusividade nomeado pelo Presidente da altura, Néstor Kirchner (marido da actual Presidente).
A investigação do procurador apontava para o envolvimento de responsáveis do Governo iraniano no atentado, para o qual terá mandatado o grupo terrorista Hezbollah – um padrão de actuação comum durante os anos 1980 e 1990. Porém, mais de duas décadas depois, nenhum dos suspeitos foi trazido à justiça e Nisman estava certo de saber porquê.
O Governo de Cristina Kirchner teria tentado entre 2011 e 2013 negociar com o Irão um acordo secreto, segundo o qual as acusações sobre os dirigentes iranianos seriam afastadas e as relações diplomáticas e comerciais poderiam ser restabelecidas – do ponto de vista argentino era crucial cair nas boas graças de um exportador de petróleo barato, numa altura de grave crise energética. A acusação de Nisman, suportada por escutas telefónicas entretanto parcialmente reveladas, ia ser apresentada a uma comissão de inquérito parlamentar, mas na madrugada da véspera, o procurador de 51 anos apareceu morto no seu apartamento de luxo no exclusivo bairro de Puerto Madero.
O caso da AMIA tinha já uma forte carga no imaginário colectivo do país, que com quase 200 mil judeus é uma das maiores comunidades em todo o mundo. Trata-se de “um símbolo de impunidade, que combina incompetência judicial com corrupção governamental e conspiração política”, observa o investigador argentino do Instituto de Ciências Sociais, Andrés Malamud, contactado pelo PÚBLICO por email.
A morte de Nisman, que devotou grande parte da sua carreira ao atentado, vem apenas acentuar o cepticismo geral sentido em relação ao desfecho de casos do género. Logo no dia em que foi conhecida a morte do procurador, milhares de pessoas manifestaram-se em frente à Casa Rosada, pedindo justiça e algumas até a acusarem Kirchner de assassínio.
Até ao momento, da Presidente apenas se conhecem duas posições sobre o assunto, ambas difundidas através da sua conta de Facebook – uma prática que contraria o hábito de Kirchner de se dirigir ao país pela televisão nacional. Num primeiro momento, quando pouco ainda se sabia sobre as circunstâncias da morte de Nisman, Kirchner não hesitou em falar em “suicídio”.
Nos últimos dias, porém, várias perícias vieram dar força à tese de se ter tratado de uma execução e a própria Presidente recuou na sua posição. “Usaram-no vivo e depois precisavam dele morto”, escreveu Kirchner numa longa missiva na rede social, em que também aproveita para se defender das acusações que Nisman tinha preparado. “A denúncia do procurador Nisman nunca foi em si mesma a verdadeira operação contra o Governo. Desmoronava-se em pouco tempo. A verdadeira operação contra o Governo era a morte do procurador depois de acusar a Presidente, o seu ministro e o secretário-geral da Cámpora [juventudes partidárias do partido de Kirchner] de terem encoberto os iranianos acusados pelo atentado na AMIA.”
A Argentina tem eleições presidenciais marcadas para Outubro que deverão dar início a um novo ciclo político – Kirchner atingiu o limite de mandatos e não pode candidatar-se. E o caso da morte de Nisman já é equacionado como um dos temas que pode influenciar o resultado. “Vai haver um antes e um depois da morte de Nisman. Há muitas perguntas e poucas respostas e penso que se vai converter numa prova de fogo para a relação com a opinião pública e com as instituições”, observa Mariel Fornoni, da consultora Management & Fit, citada pela revista Cronista.
A confirmar-se, o grande prejudicado seria o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, o mais que provável candidato do sector kirchnerista. Por seu turno, o dirigente oposicionista da Frente Renovador e um dos favoritos à vitória, Sergio Massa, definiu a morte de Nisman como uma “mancha enorme no processo democrático”.
Para Andrés Malamud, “inicialmente, a morte de Nisman prejudicou o Governo e os candidatos oficialistas”. “Mas depois de três dias, a Presidente articulou um relato verosímil que é provável que prevaleça no debate político”. A normalidade será retomada e “o destino do oficialismo voltará a depender apenas da economia”.