Obama quer uma "economia de classe média"

Presidente dos EUA apresenta um ambicioso programa legislativo, mas os republicanos avisam que não aprovarão nada.

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Obama envia um beijo à mulher, Michelle, que assitiu ao discurso Jonathan Ernst/Reuters

Falou como se tivesse todo o tempo do mundo e todos os votos do mundo — como se não estivesse de saída da Casa Branca (em Novembro de 2016 é escolhido um novo Presidente), como o seu Partido Democrata não tivesse perdido, há escassos meses, a maioria no Senado (já não tinha a da Câmara dos Representantes).

Barack Obama não tem, neste momento, qualquer capacidade legislativa. Mas optou por ignorar este "entrave" e, no discurso em que é esperado que o Presidente apresente a sua agenda anual, proclamou que o país "virou a página" porque a recessão acabou no país e que chegou o momento de voltar a dar poder de compra e peso político à classe média. Falou numa "estratégia para uma economia de classe média".

"Cabe-nos a nós escolher como queremos estar dentro de 15 anos. Vamos aceitar uma economia onde apenas alguns de nós nos saímos espectacularmente bem? Ou vamos assumir um compromisso com uma economia que gera rendimentos e hipóteses para que toda a gente tenha a possibilidade de os ter? […] Não, não voltaremos para uma economia enfraquecida pela transferência de empregos para o exterior, pela forte dívida e pelos falsos lucros financeiros. Vamos construir uma economia feita para durar, onde o trabalho duro é recompensado. Podemos fazer isso. Sei que podemos, pois já fizemos antes."

Numa das suas propostas mais polémicas, Obama atacou as desigualdades do sistema tributário americano, que permite aos ricos o pagamento de uma taxa menor de impostos do que a classe média. "Milhões de americanos que trabalham duramente e fazem tudo correctamente todos os dias merecem um governo e um sistema financeiro que façam o mesmo", disse sobre a sua "taxa Robin dos Bosques". Obama quer reeditar a "regra Buffett", que define uma taxa mínima de impostos para pessoas com rendimento superior a um milhão de dólares.

No capítulo da política externa, o Presidente americano disse que os EUA têm "o direito" de agir unilateralmente na luta contra o terrorismo e pediu ao Congresso mais margem de manobra para prosseguir os ataques contra o Estado Islâmico. Considerou que o início da normalização das relações com Cuba são um passo histórico e pediu o fim do embargo - Obama levou ao Capitólio, como seu convidado, Alain Gross, que esteve preso em Cuba e foi agora libertado; os republicanos (contra a abertura e o fim do embargo), levaram dissidentes do regime de Havana. 

O Presidente apresentou também propostas no campo da educação — o financiamento das propinas de estudantes com maiores dificuldades económicas —, da cibersegurança e da imigração, defendendo neste último ponto que a segurança na fronteira passe a ser uma responsabilidade federal e propondo o endurecimento das sanções às empresas que contratem trabalhadores sem documentos.

"Devíamos trabalhar já numa reforma na área de imigração. Se os ‘políticos de ano eleitoral’ impedirem o Congresso de avançar com um plano, pelo menos concordem em que temos que deixar de expulsar jovens responsáveis que só querem ter a possibilidade de ter um negócio. Mandem-me uma lei que dê a estas pessoas a possibilidade de terem cidadania, que eu assino."

Os "políticos de ano eleitoral" são os que, a dois anos das presidenciais, já só trabalham a pensar nelas. São aqueles que esperam que um Presidente em fim de mandato se mantenha discreto e não crie fracturas, uma vez que está de saída, sobretudo quando não tem o Congresso do seu lado.

Foram estes que perguntaram, em primeiro lugar, para que foi este discurso. Já perto do final, Obama como que admitiu que o seu discurso mais parecia o de um Presidente em campanha para a reeleição. "Já não tenho mais campanhas", disse, e da bancada republicana surgiram aplausos. O Presidente foi rápido na resposta: "Eu sei, já não tenho campanhas porque já ganhei as duas a que concorri." Prosseguiu com o raciocínio: "A minha agenda para os próximos dois anos é a mesma que tinha no primeiro dia, no dia em que fiz o meu juramento [como Presidente] na escadaria do Capitólio — fazer o que acredito ser o melhor para a América".

Discurso para a História
O jornal The New York Times quis saber por que razão Obama não se retraiu neste momento que lhe é, teoricamente, tão desfavorável. Jon Favreau, que já escreveu os discursos do Presidente, disse que Obama nunca esvaziaria o seu discurso e as suas intenções. "Seria como ir para uma entrevista de emprego perguntar quanto é que o empregador estava disposto a pagar em vez de lutar por um salário maior. […] Se me perguntar se eu acredito que os republicanos estão disponíveis para chegar a um compromisso na reforma fiscal, eu digo que não. Mas isso não deve impedir o Presidente de propor o que pensa ser a melhor solução para o problema", disse Favreau.

Ao longo de todo o discurso, disseram os analistas, houve um fio condutor. Obama não se cansou de falar de valores políticos, pelo que alguns viram neste Estado da União um discurso para a História — para o legado de Obama, que quer acabar o seu segundo e último mandato com resultados, mas também com qualquer coisa mais. Neste caso, e como frisava o NYT, mostrando-se como um líder arrojado e corajoso, que não deixa de exigir acção mesmo quando é improvável que o deixem mexer em alguma coisa.

Como habitualmente, o discurso foi rebatido pela oposição e a figura escolhida este ano foi a estrela em ascensão no Partido Republicano, a recém-eleita senadora Joni Ernst. Como se esperava dela, Ernst fez críticas às propostas e abordagens do Presidente democrata, por exemplo na saúde (o Obamacare pretendeu alargar o acesso a uma saúde pública) e na imigração (Obama avançou com uma iniciativa presidencial para dar cidadania a uma percentagem de ilegais). "Os americanos estão a sofrer mas, quando exigimos soluções, Washington responde quase sempre da mesma maneira teimosa que produziu políticas falhadas como o Obamacare", disse Joni Ernst.

Ernst acusou o Presidente de não querer chegar a qualquer entendimento com os republicanos e disse que o exemplo de que é assim foi este discurso que não apresentou pontos substanciais em que é possível um acordo. O líder da nova maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, disse o mesmo — que Obama não estendeu a mão.

Os republicanos acusam Obama de ser um provocador. O Presidente queixa-se do mesmo, de só receber da parte dos republicanos propostas que já sabem que serão vetadas — as mais recentes são duas propostas de lei, uma para proibir o aborto depois das 20 semanas e outra para acelerar a construção de uma conduta de gás natural.

"O que está ele para ali a dizer quando sabe que não tem a menor hipótese de ver nada disto aprovado?", disse o senador Lamar Alexander, espantado com o que estava a ouvir. "Pensava que nos seus últimos dois anos o Presidente iria querer realizar alguma coisa, pensei que se ia centrar no comércio, na educação, na cibersegurança, áreas onde é possível chegar a acordo."

Ficou claro que o confronto político vai marcar o que resta da presidência Obama, até ao último dos dias.

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