A marcha corta-e-cola de Paris
As fotografias dos líderes que foram a Paris abraçar Hollande mostraram a realidade? Depende da perspectiva. Choveram críticas aos fotojornalistas por não mostrarem que o grupo estava isolado da grande manifestação. Sarkozy serviu como agent provocateur da torrente de imagens manipuladas.
A massificação do acesso à Internet potenciou a rápida difusão dessas imagens falsas, tal como o grau de escrutínio a que são sujeitas todas as fotografias. Mas a torrente de informação a que somos expostos dificulta a nossa capacidade de identificar os embustes e de os voltar a catalogar na memória como mentiras. Um exemplo: na visita que George W. Bush fez a uma escola em 2002, a famosa fotografia que mostra o então Presidente dos EUA a segurar um livro ao contrário, é verdadeira ou falsa? E a do turista no topo de uma das Torres Gémeas de costas para um avião a aproximar-se? Temos todos presente que são falsas?
As imagens manipuladas com origem na capital francesa visaram em particular o grupo de líderes políticos que se manifestou em defesa da liberdade de imprensa, tal como o fizeram mais de um milhão de anónimos à sua volta. São todas imediatamente reconhecíveis, mesmo a única falsificação feita com o intuito de passar por verdade – a fotografia publicada na primeira página do jornal judeu ultra-ortodoxo HaMevaser, de Israel, que apagou todas as mulheres por conservadorismo religioso. O logro foi denunciado e repudiado por outros media israelitas.
A eliminação de mulheres por “ultraconservadores” não é algo novo, nota o designer gráfico Marco Escobedo. O peruano diz ao PÚBLICO que a intenção de jornais como o HaMevaser, que apagou Angela Merkel e Federica Mogherini, é “minimizar a presença feminina e desvalorizar a sua imagem”. Outros meios de igual orientação ideológica já o tinham feito: reconhecidamente, o nova-iorquino Di Tzeitung, que eliminou Hillary Clinton e Audrey Tomason da Situation Room da Casa Branca, e o israelita Yated Ne'eman, que retirou as mulheres de uma fotografia oficial do governo de Netanyahu.
O que essa acção acabou por destacar, no entanto, foi o escasso número de mulheres na primeira linha do grupo de representantes oficiais que acorreram a Paris. O jornal satírico irlandês Waterford Whispers pôs a circular uma versão em que apenas figuravam Mogherini, Merkel e Anne Hidalgo. Três mulheres numa rua deserta. Uma imagem que, apesar de ser claramente falsa e com fonte definida (um jornal humorístico), se partilhou nas redes sociais como obra de um jornal feminista.
É fácil perceber por que a imagem passou por verdadeira. A manipulação “também é um meio utilizado por artistas e fotógrafos para denunciar problemas sociais, consequências da guerra, prostituição, pederastia, corrupção”, diz Marco Escobedo, lembrando que esse tipo de trabalho já é feito ostensivamente e em grande escala em campanhas publicitárias como as da PETA. Por que não poderia um movimento feminista proceder de forma idêntica?
Os utilizadores da Internet têm picos de interesse por assuntos muito diversos. Quando algo se transforma numa “tendência” nas redes sociais, a produção deste tipo de imagens acontece em catadupa. E essa é a principal razão para que seja difícil dizer se o número de manipulações partilhadas nos últimos dias foi superior a momentos proporcionados por Kim Kardashian a mostrar o rabo, por Kim Jong-Il a olhar para objectos, por um agente da polícia a pulverizar um manifestante na Califórnia com gás-pimenta ou por um Keanu Reeves tristonho.
Na manifestação de solidariedade às vítimas dos ataques ao Charlie Hebdo e à mercearia kosher de Paris, o que foi caricaturado à exaustão foi a sede de protagonismo de Nicolas Sarkozy. O ex-Presidente francês, que está de regresso à liderança da UMP, furou o protocolo e chegou-se à frente para ficar na fotografia. O que os cibernautas acharam hilariante e lhes deu motivo para produzirem fotomontagens que, dando-lhe uma importância desmesurada na história da humanidade, o ridicularizavam e rebaixavam. Uma das primeiras substituía todos os rostos de todos os líderes políticos na manifestação pelo de Sarkozy.
O que não é só uma crítica ao ex-Presidente francês, sublinha Jarek Kubicki ao PÚBLICO: “Colar a cara de Sarkozy em todos os seus rostos é um statement: vocês são todos Sarkozy, são todos hipócritas.” O artista polaco refere-se ao facto de o grupo de políticos incluir líderes que não respeitam a liberdade de imprensa e de expressão, como o Presidente do Gabão, Ali Bongo, o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, e os ministros dos Negócios Estrangeiros de Rússia, Egipto, Argélia e Emirados Árabes Unidos. Esse escrutínio também foi feito online.
A realidade é real?
No próprio dia da “manifestação republicana”, as imagens do grupo de líderes políticos que acompanharam o Presidente François Hollande começaram a dar polémica. Sobretudo, quando o jornal Le Monde divulgou uma fotografia (sem autoria atribuída e captada de um ponto elevado), pouco antes do início da marcha, onde o triângulo de políticos e seguranças se mostra separado do resto dos manifestantes.
Apesar de muitos comentários admitirem que essa separação se impunha por razões de segurança, outros criticaram a falta de coragem dos políticos de estarem lado a lado com as centenas de milhares de pessoas que encheram as ruas à volta da Praça da República. Mas o grosso das críticas dirigiu-se aos autores das imagens e à forma como foram captadas e divulgadas. Choveram acusações de “manipulação”, “mentira”, “maquilhagem da realidade”, “hipocrisia” e, para além de “enganados”, houve quem se sentisse “ofendido”. É que a esmagadora maioria das imagens (fotográficas e videográficas) que correram mundo imediatamente a seguir ao início da manifestação (e as que vieram estampadas nos jornais do dia a seguir) davam a entender que era este grupo de cerca de 50 líderes políticos que encabeçava a gigantesca marcha de Paris. Na verdade, aqueles que se juntaram a Hollande na capital francesa marcharam numa rua inacessível ao resto dos manifestantes e nunca se cruzaram directamente com eles (segundo o Le Monde estiveram na Place Léon Blum, que fica a quase dois quilómetros da Praça da República).
A confusão sobre "quem estava onde" ganhou terreno, tendo em conta que a maioria das imagens divulgadas pelas agências induzia em erro e não era explícita sobre a localização dos políticos.
Entre as centenas de imagens divulgadas por duas das principais agências internacionais de notícias, a Reuters e a France Press, contam-se pelos dedos de uma mão as fotografias onde é possível perceber que Angela Merkel, David Cameron, Mariano Rajoy ou Pedro Passos Coelho estão numa manifestação paralela àquela que juntou um milhão e meio de pessoas em Paris. O que vimos partilhado nas redes sociais e reproduzido à exaustão nas capas dos jornais foram fotografias frontais de líderes políticos de braços entrelaçados, talvez a perspectiva menos rigorosa deste acontecimento de escala global.
Para lá da discussão sobre se os políticos deveriam estar entre os manifestantes, episódios como este representam mais uma machadada naquele que é um dos alicerces do fotojornalismo: atestar o real. Num tempo em que a produção fotográfica de vocação puramente documental se vê diminuída na sua força (as redacções tendem a desinvestir em secções de fotojornalismo próprias, experientes e profissionais), nada como um rastilho como este para incendiar a discussão e colocar uma profissão já fragilizada ao nível dos mais temíveis manipuladores da realidade.
A propósito de um trabalho recente da fotógrafa Patrícia Almeida, que lida com a uniformidade das imagens dos media e a maneira como cada vez mais são produzidas de forma acrítica e repetidas à exaustão, o professor de fotografia Sérgio Mah alertou para o “colapso da profissão de fotojornalista”, um desaparecimento que na sua opinião “não está a ser avaliado com deve ser”. “As mudanças não são socioprofissionais, mas também ideológicas.”