Houellebecq faz capa do Charlie Hebdo no dia em que sai novo romance
O célebre e polémico escritor imagina a França dirigida por um Presidente muçulmano. O semanário põe Houllebecq a afirmar: "Em 2015, perdi os dentes,em 2022, cumpro o Ramadão".
Na edição, que tem como tema principal as previsões do chamado "mago Houellebecq", lê-se no editorial assinado por Bernard Maris: "Suprimam a polícia uns dias e verão que o temor a Deus não impedirá grande coisa". Páginas à frente, num cartoon assinado por Charb, uma das vítimas do atentado, que ganha agora uma trágica ressonância, um jihadista armado, perante o cabeçalho "ainda sem atentados em França", comenta: "Escutem, temos até ao fim de Janeiro para vos endereçar os nossos votos de Bom Ano".
O Charlie Hebdo é um semanário célebre pelo humor que desenvolve em forma de cartoon, sem poupar ninguém. Nas suas páginas são e foram satirizados todo o tipo de religiões, políticos, actores, músicos e outras figuras públicas.
Horas antes, numa entrevista à emissora France Inter dedicada ao seu novo romance Michel Houellebecq defendeu-se das acusações de racismo e islamofobia de que Soumission vem sendo acusado. “Não julgo que isso seja evidente neste livro”, declarou.
Terça-feira à noite, convidado no noticiário nocturno do canal televisivo France 2, o escritor foi confrontado com a declaração, por parte do dirigente de uma associação anti-racismo, de que Soumission é o melhor presente de Natal que Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional, poderia ter desejado. Ripostou não existir “nenhum romance que tenha alterado o rumo da História”, acrescentando que “Marine Le Pen não precisa disto. As coisas estão a correr-lhe muito bem neste momento”.
A narrativa de Soumission decorre em 2022 e imagina um cenário em que Marine Le Pen e o fictício Mohammed Bem Abbes, candidato de um partido formado por muçulmanos franceses, a Irmandadde Muçulmana Francesa, se defrontam na segunda volta das eleições presidenciais. A vitória deste último, apoiado por todos os partidos à esquerda da Frente Nacional para impedir a sua vitória, conduz a várias transformações em França (as mulheres largam os seus empregos para cuidar dos filhos em casa; as universidades tornam-se centros de ensino islâmicos) e na Europa (a Turquia e vários países norte-africanos juntam-se à União Europeia).
Soumission tem sido qualificado como irresponsável por propagar as ideias da Frente Nacional (disse-o, por exemplo, Laurent Joffrin, director do Libération) mas também descrito como “sublime, de uma extraordinária consistência romanesca” pelo escritor Emmanuel Carrère, que o alinha na tradição da literatura profética de 1984, de George Orwell, ou de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Em entrevistas anteriores Houellebecq defendera-se invocando a neutralidade do seu gesto criativo. “Não estou a escolher um lado, não defendo qualquer regime. Declino qualquer responsabilidade, reivindico até total irresponsabilidade”, afirmou, citado pelo Telegraph. Confrontado com declarações suas no passado, nas quais referira o Islão como “a mais estúpida das religiões”, confessou ter entretanto mudado de opinião: “O Corão revelou-se bem melhor do que pensava, agora que reli, ou melhor, que o li”. Na entrevista desta quarta-feira à France Inter, afirmou: “A parte do romance que assusta é acima de tudo a anterior à chegada dos muçulmanos ao poder. Não podemos dizer que isso, esse regime [imaginado em Soumission], seja aterrorizador”. Segundo o autor, "as coisas não correm assim tão mal [no livro]" - excepto "se for feminista".
Soumission é alvo de uma primeira edição de 150 mil exemplares e está já no topo da lista de best-sellers da Amazon francesa, algo pouco surpreendente tendo em conta o estatuto do autor de As Partículas Elementares, que acumula os títulos de mais polémico e mais célebre romancista francês da actualidade. Soumission, porém, parece estar a ultrapassar polémicas anteriores. A AFP escreve que a “avalanche de comentários” gerados pela obra na imprensa e nas redes sociais é, “segundo vários peritos”, algo “nunca visto em França a propósito de um romance”.